Estará a Europa a ficar encurralada?
Estará a Europa a ficar encurralada, no estruturante dos seus valores (a liberdade de debate, p.e.), pela onda de propaganda e de agressividade do radicalismo islâmico? A agenda do diálogo democrático - político, social, cultural ou filosófico - terá de ser necessariamente marcada pelas "massas ululantes" incendiadas pelos líderes fundamentalistas que se apropriaram do islão anti--islão (na verdade, a violência não pertence à essência do islão)?
Primeiro, tivemos o episódio das caricaturas, já de si preocupante, mas que resultou, de facto e segundo os seus próprios autores confessaram, num acto provocatório em direcção às tranquilas comunidades islâmicas residentes nos países nórdicos - e daí o protesto sensato dos que nele viram um acto gratuito e contraproducente. Hoje, temos o já célebre discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, sobre o qual muitos falaram sem o ler, descontextualizado pelo simplismo dos jornalistas que reduziram as palavra do Papa (e, logo, o seu suposto pensamento) à simples pergunta-citação do imperador bizantino Manuel II Paleólogo. Na verdade, a questão levantada pelo Papa, profunda do ponto de vida do debate entre religiões e entre culturas, a da relação entre razão e fé, não contém qualquer agressividade ou provocação em direcção ao "outro", mas tão-só o convite a um democrático e necessário tema de reflexão.
A defesa do Papa, sobretudo após a sua posterior explicação quanto ao sentido das suas palavras e à essência do seu pensamento, deveria ter sido assumida por muitos políticos e intelectuais europeus (o ex-presidente americano Clinton e, também, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, deram-lhes uma clara lição de coragem e de coerência). Mas, nos dias de hoje, a Europa está semeada de Chamberlains e de Daladiers, os tais líderes que se curvaram perante Hitler, pensando encontrar a paz com a sua cobardia e a venda de povos da Europa a Hitler. Foram aplaudidos por opiniões públicas que, como se entende, queriam a paz e depois viram os seus filhos morrer às centenas de milhares para vencer o monstro. A paz veio à custa do "sangue, suor e lágrimas" de Churchill, dos exércitos americanos e da resistência de De Gaulle. Chamberlain e Daladier repousam, hoje, nos poços da História.
Tariq Ramadan, insuspeito catedrático de Estudos Islâmicos e investigador principal em Oxford, num texto publicado por diversos jornais europeus (a começar pelo também insuspeito El País), embora admitindo que os exemplos escolhidos pelo Papa para abordar a relação entre a violência e o islão "são discutíveis, para não dizer surpreendentes", pergunta, no entanto: "Foram [as suas palavras] um insulto pelo qual se haja de pedir uma desculpa formal? É justo ou sensato que os muçulmanos se ofendam com a citação - só porque foi escolhida pelo Papa -, quando ignoram diariamente, desde há cinco anos, as interpretações sobre o significado de jihad ou o uso da força?"
E, apesar de aqueles que já vêem no Papa um novo alvo para o seu antiocidentalismo militante (e falo dos europeus) e procuram inventar "sinais" de uma descolagem de Bento XVI do diálogo de religiões (o que os factos desmentem, desde a viagem à Turquia ao agora anunciado encontro do Cairo), Tariq Ramadan, sem deixar de manifestar as suas discordâncias sobre o modo como ele parece ver o que chama de "verdadeiro debate" da relação com o islão, "racionalmente" sublinha depois o erro de muitos muçulmanos e dos seus aliados europeus: "Bento XVI é um homem do seu tempo e as perguntas que faz aos muçulmanos correspondem a esse tempo, umas perguntas que devem e podem ser respondidas com clareza e argumentos sólidos."
O muçulmano Ramadan levanta depois outra questão: "O aspecto mais inquietante da crise é talvez o de que a maioria dos comentaristas, e em especial os comentaristas muçulmanos, parece ter ignorado o autêntico debate lançado por Bento XVI." E uma questão final, a mais importante e profunda, a meu ver, a de um diálogo desarmado, por parte de uma Europa de raiz cristã. "No seu discurso, o Papa recorda aos secularistas racionalistas", escreve o catedrático de Estudos Islâmicos, "desejosos de eliminar da Ilustração todas as referências ao cristianismo, que essas referências são parte fundamental da identidade europeia. E que lhes será impossível entabular um diálogo interconfessional se não podem aceitar as bases cristãs da sua própria identidade (sejam ou não crentes)".
Não sei se Tariq Ramadan leu o excelente livro de André Retzler "Os intelectuais contra a Europa" ou se recordou os intelectuais e políticos europeus dos "movimentos da paz" contra a "ameaça" das acções de defesa do Ocidente face à real ameaça dos mísseis soviéticos. Hoje, independentemente do debate político e filosófico, vemos como as sementes da demissão deram frutos.
José Manuel Barroso
Retirado do Diário de Notícias, 26 de Setembro de 2006.
Primeiro, tivemos o episódio das caricaturas, já de si preocupante, mas que resultou, de facto e segundo os seus próprios autores confessaram, num acto provocatório em direcção às tranquilas comunidades islâmicas residentes nos países nórdicos - e daí o protesto sensato dos que nele viram um acto gratuito e contraproducente. Hoje, temos o já célebre discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, sobre o qual muitos falaram sem o ler, descontextualizado pelo simplismo dos jornalistas que reduziram as palavra do Papa (e, logo, o seu suposto pensamento) à simples pergunta-citação do imperador bizantino Manuel II Paleólogo. Na verdade, a questão levantada pelo Papa, profunda do ponto de vida do debate entre religiões e entre culturas, a da relação entre razão e fé, não contém qualquer agressividade ou provocação em direcção ao "outro", mas tão-só o convite a um democrático e necessário tema de reflexão.
A defesa do Papa, sobretudo após a sua posterior explicação quanto ao sentido das suas palavras e à essência do seu pensamento, deveria ter sido assumida por muitos políticos e intelectuais europeus (o ex-presidente americano Clinton e, também, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, deram-lhes uma clara lição de coragem e de coerência). Mas, nos dias de hoje, a Europa está semeada de Chamberlains e de Daladiers, os tais líderes que se curvaram perante Hitler, pensando encontrar a paz com a sua cobardia e a venda de povos da Europa a Hitler. Foram aplaudidos por opiniões públicas que, como se entende, queriam a paz e depois viram os seus filhos morrer às centenas de milhares para vencer o monstro. A paz veio à custa do "sangue, suor e lágrimas" de Churchill, dos exércitos americanos e da resistência de De Gaulle. Chamberlain e Daladier repousam, hoje, nos poços da História.
Tariq Ramadan, insuspeito catedrático de Estudos Islâmicos e investigador principal em Oxford, num texto publicado por diversos jornais europeus (a começar pelo também insuspeito El País), embora admitindo que os exemplos escolhidos pelo Papa para abordar a relação entre a violência e o islão "são discutíveis, para não dizer surpreendentes", pergunta, no entanto: "Foram [as suas palavras] um insulto pelo qual se haja de pedir uma desculpa formal? É justo ou sensato que os muçulmanos se ofendam com a citação - só porque foi escolhida pelo Papa -, quando ignoram diariamente, desde há cinco anos, as interpretações sobre o significado de jihad ou o uso da força?"
E, apesar de aqueles que já vêem no Papa um novo alvo para o seu antiocidentalismo militante (e falo dos europeus) e procuram inventar "sinais" de uma descolagem de Bento XVI do diálogo de religiões (o que os factos desmentem, desde a viagem à Turquia ao agora anunciado encontro do Cairo), Tariq Ramadan, sem deixar de manifestar as suas discordâncias sobre o modo como ele parece ver o que chama de "verdadeiro debate" da relação com o islão, "racionalmente" sublinha depois o erro de muitos muçulmanos e dos seus aliados europeus: "Bento XVI é um homem do seu tempo e as perguntas que faz aos muçulmanos correspondem a esse tempo, umas perguntas que devem e podem ser respondidas com clareza e argumentos sólidos."
O muçulmano Ramadan levanta depois outra questão: "O aspecto mais inquietante da crise é talvez o de que a maioria dos comentaristas, e em especial os comentaristas muçulmanos, parece ter ignorado o autêntico debate lançado por Bento XVI." E uma questão final, a mais importante e profunda, a meu ver, a de um diálogo desarmado, por parte de uma Europa de raiz cristã. "No seu discurso, o Papa recorda aos secularistas racionalistas", escreve o catedrático de Estudos Islâmicos, "desejosos de eliminar da Ilustração todas as referências ao cristianismo, que essas referências são parte fundamental da identidade europeia. E que lhes será impossível entabular um diálogo interconfessional se não podem aceitar as bases cristãs da sua própria identidade (sejam ou não crentes)".
Não sei se Tariq Ramadan leu o excelente livro de André Retzler "Os intelectuais contra a Europa" ou se recordou os intelectuais e políticos europeus dos "movimentos da paz" contra a "ameaça" das acções de defesa do Ocidente face à real ameaça dos mísseis soviéticos. Hoje, independentemente do debate político e filosófico, vemos como as sementes da demissão deram frutos.
José Manuel Barroso
Retirado do Diário de Notícias, 26 de Setembro de 2006.
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