As mães
Aurora nasceu no sábado, dia 8, lá longe na cidade de São Paulo.
Passei à categoria de avó e, muito mais importante, a Catarina iniciou essa aventura, combate e milagre que é ser mãe.
Revi as interpretações várias que, nas últimas décadas, foram dadas da maternidade. Lembrei-me dos primeiros tempos da faculdade e das paladinas da mulher sem filhos, abertas que começavam a estar as portas para as carreiras profissionais, o controlo biológico do corpo, a autodeterminação, em suma!
Quem é que pensava ser mãe entre a agitada vida académica, a participação política e contestatária, a possibilidade de pontuar nas grandes discussões e até, porque não?, uma fuga para Katmandu?
No meu meio, bastante burguês valha a verdade, as "meninas" comoviam-se com a perspectiva maternal. Queriam casar e ter filhos, o que fizeram na sua maioria, tornando-se profundamente maçadoras com intermináveis conversas sobre problemas de dentição e máximas do Dr. Spock.
A classe média, pelo seu lado, despertava então para as maravilhas da sociedade de consumo e desejava ter filhos como o bebé Nestlé, pelo que se impunha bastante parcimónia a fim de fazer render o dinheiro para propiciar a cada rebento a parafernália - então almejada e hoje obrigatória - própria de um recém- -nascido: camas desmontáveis, andarilhos, cadeiras anatómicas, brinquedos, biberões, aquecedores de biberões, esterilizadores, máquinas de vapor, loções várias, cotonetes, fraldas descartáveis e um sem número de farinhas e purés.
No bairro onde eu vivia e vivo, havia pobres.
Mulheres pobres, mães de inúmeras crianças mais pobres ainda. Eram pobres visíveis que as estatísticas não procuravam sequer disfarçar, numa época em que para a pobreza só havia, como paliativo, a caridade. Estes pobres eram periodicamente objecto de grandes discussões, em que uns advogavam que os pobres não deviam ter tantos filhos e outros, alegando a hipocrisia de tal afirmação, afirmavam que não devia haver tantos pobres.
Casei-me muito cedo.
Vejo agora à distância que não tinha qualquer preparação para quase nada, do muito de fantástico (bom e mau) com que a vida me distinguiu.
Desejava os filhos mas odiava a gravidez, nove meses de uma convivência complicada que me deixava impaciente e cheia de complexos de culpa.
Quando nasciam e eu os agarrava, vinha- -me à cabeça este pensamento terrível: e agora? Sabia que era preciso prolongar aquele parto por muitos anos, empurrando-os com jeito para a vida. Que era preciso protegê-los mas dar-lhes auto-estima; chamá-los meus mas respeitar a sua autonomia e a sua identidade; mimá-los mas torná-los resistentes às vicissitudes do destino; dar-lhes o exemplo mas não os esmagar com estereótipos; proporcionar-lhes condições de êxito mas evitar-lhes o peso de um coração duro. Como fazer? Quem é que me educara para educar?
Enquanto provedora, as crianças trepavam por mim acima, agarrando-me, puxando-me os brincos e os colares cujo brilho era irresistível naquele pequeno mundo de sombras tentando perigosamente desatar nós de abandono e fazer laços de afecto.
A montante, na Alfredo da Costa, foram as mães que me agarravam as mãos, as que não queriam os filhos, as que não podiam sequer querer os filhos, porque não tinham nem emprego, nem casa, nem companheiro, nem família. E as que tinham medo. E aquelas cujos bebés não eram "perfeitinhos" e desnorteadas viam o mundo desabar em seu redor. E as que choravam porque tinham perdido o bebé. E as que vinham para interromper voluntariamente a gravidez. E que também choravam. Que dizer? Quase sempre só o silêncio e os gestos podiam, com vantagem, substituir as palavras.
Recordei, na minha filha, todas as mães.
Muitas histórias de coragem, de amor e de esperança, protagonizadas por heroínas anónimas em quotidianos difíceis. E pensei na filha da minha filha. De como tínhamos cumprido a nossa renovação geracional. E com ela, fechado um ciclo e aberto outro.
Maria José Nogueira Pinto
Retirado do Diário de Notícias, 14 de Julho de 2006
Passei à categoria de avó e, muito mais importante, a Catarina iniciou essa aventura, combate e milagre que é ser mãe.
Revi as interpretações várias que, nas últimas décadas, foram dadas da maternidade. Lembrei-me dos primeiros tempos da faculdade e das paladinas da mulher sem filhos, abertas que começavam a estar as portas para as carreiras profissionais, o controlo biológico do corpo, a autodeterminação, em suma!
Quem é que pensava ser mãe entre a agitada vida académica, a participação política e contestatária, a possibilidade de pontuar nas grandes discussões e até, porque não?, uma fuga para Katmandu?
No meu meio, bastante burguês valha a verdade, as "meninas" comoviam-se com a perspectiva maternal. Queriam casar e ter filhos, o que fizeram na sua maioria, tornando-se profundamente maçadoras com intermináveis conversas sobre problemas de dentição e máximas do Dr. Spock.
A classe média, pelo seu lado, despertava então para as maravilhas da sociedade de consumo e desejava ter filhos como o bebé Nestlé, pelo que se impunha bastante parcimónia a fim de fazer render o dinheiro para propiciar a cada rebento a parafernália - então almejada e hoje obrigatória - própria de um recém- -nascido: camas desmontáveis, andarilhos, cadeiras anatómicas, brinquedos, biberões, aquecedores de biberões, esterilizadores, máquinas de vapor, loções várias, cotonetes, fraldas descartáveis e um sem número de farinhas e purés.
No bairro onde eu vivia e vivo, havia pobres.
Mulheres pobres, mães de inúmeras crianças mais pobres ainda. Eram pobres visíveis que as estatísticas não procuravam sequer disfarçar, numa época em que para a pobreza só havia, como paliativo, a caridade. Estes pobres eram periodicamente objecto de grandes discussões, em que uns advogavam que os pobres não deviam ter tantos filhos e outros, alegando a hipocrisia de tal afirmação, afirmavam que não devia haver tantos pobres.
Casei-me muito cedo.
Vejo agora à distância que não tinha qualquer preparação para quase nada, do muito de fantástico (bom e mau) com que a vida me distinguiu.
Desejava os filhos mas odiava a gravidez, nove meses de uma convivência complicada que me deixava impaciente e cheia de complexos de culpa.
Quando nasciam e eu os agarrava, vinha- -me à cabeça este pensamento terrível: e agora? Sabia que era preciso prolongar aquele parto por muitos anos, empurrando-os com jeito para a vida. Que era preciso protegê-los mas dar-lhes auto-estima; chamá-los meus mas respeitar a sua autonomia e a sua identidade; mimá-los mas torná-los resistentes às vicissitudes do destino; dar-lhes o exemplo mas não os esmagar com estereótipos; proporcionar-lhes condições de êxito mas evitar-lhes o peso de um coração duro. Como fazer? Quem é que me educara para educar?
Enquanto provedora, as crianças trepavam por mim acima, agarrando-me, puxando-me os brincos e os colares cujo brilho era irresistível naquele pequeno mundo de sombras tentando perigosamente desatar nós de abandono e fazer laços de afecto.
A montante, na Alfredo da Costa, foram as mães que me agarravam as mãos, as que não queriam os filhos, as que não podiam sequer querer os filhos, porque não tinham nem emprego, nem casa, nem companheiro, nem família. E as que tinham medo. E aquelas cujos bebés não eram "perfeitinhos" e desnorteadas viam o mundo desabar em seu redor. E as que choravam porque tinham perdido o bebé. E as que vinham para interromper voluntariamente a gravidez. E que também choravam. Que dizer? Quase sempre só o silêncio e os gestos podiam, com vantagem, substituir as palavras.
Recordei, na minha filha, todas as mães.
Muitas histórias de coragem, de amor e de esperança, protagonizadas por heroínas anónimas em quotidianos difíceis. E pensei na filha da minha filha. De como tínhamos cumprido a nossa renovação geracional. E com ela, fechado um ciclo e aberto outro.
Maria José Nogueira Pinto
Retirado do Diário de Notícias, 14 de Julho de 2006
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