Quando eu for grande
Que estranha coisa: no passado dia 25 de Abril, houve quorum na Assembleia da República! E era um feriado! Também, é verdade que não havia votações, de modo que a sessão não dava muito trabalho: era só estar lá, mais nada. Ainda por cima, não havia aplausos obrigatórios. Nem sequer foi preciso cantar o hino nacional, pois para isso havia um coro, desafinado mas cheio de boa vontade.
O leitor terá compreendido que as linhas que atrás leu têm como inspiração aquele edificante acontecimento ocorrido nas vésperas da Páscoa, quando não foi possível realizar votações no Parlamento porque demasiados senhores deputados, depois de assinarem o ponto, se botaram ao fresco – uns porque foram pais, outros porque foram avós, outros por motivos pessoais mas muito prementes; e houve ainda aqueles que estavam a fazer “trabalho político relevante” (ah, como eu gosto desta expressão!) e encontravam-se, pois, a relevar em qualquer outro lado.
Não vou comentar este facto em si mesmo, porquanto ele foi já abundantemente mencionado, criticado, discutido. Só pretendo reavivar a memória dos meus caros concidadãos, porque estas coisas tendem a cair no esquecimento. E é pela mesmíssima razão que recordo, também, aquele outro incidente, igualmente edificante, ocorrido quando um clube de futebol jogava em Espanha e houve um número apreciável de senhores deputados que decidiram transferir-se das bancadas de S. Bento para as de um estádio espanhol, sendo que, para completar a coisa, muitos deles consideraram que, ao faltar à sessão da Assembleia, estavam, assim, a cumprir uma função política (o tal “trabalho relevante”, com certeza) e deviam, por conseguinte, ter a falta justificada.
Mas a que vem tudo isto, agora, se já muito se falou no assunto? Respondo: falou, é verdade; porém, faltou a perspectiva histórica. E é essa que eu quero, digamos, aflorar.
Para o fazer, vamos recuar até ao reinado de D. Manuel II. Estávamos então, como se sabe, em Monarquia Constitucional. A breve ditadura de João Franco caíra. Tinha havido eleições. Encontrava-se em funções um Parlamento eleito. Tendo em conta este enquadramento, penso ser extremamente instrutiva a leitura de alguns comentários feitos pelo jovem D. Manuel – que, apesar de jovem, levava muito a sério as questões de Estado – a propósito do trabalho feito pelos senhores deputados de então.
De uma carta escrita pelo rei ao presidente do Ministério: “Enquanto ao que me diz de ontem não ter havido número na Câmara dos Deputados acho que é simplesmente insuportável e desta maneira nunca mais se acaba. Quando têm as Câmaras fechadas berram e não querem, quando as têm abertas não vão lá”.
Excerto de uma outra carta enviada pelo soberano, também ao chefe do Governo: “É verdadeiramente extraordinário que estando nós a 21 de Julho ainda não se tenha começado a discutir o orçamento [...]. Por qualquer motivo não há sessão; arranjam isto com facilidade”.
E, finalmente, cito o seguinte trecho de uma terceira carta, esta escrita para José Luciano: “Que triste espectáculo nós damos! Quase todos os dias falta de número na Câmara!”.
Faço notar que não se trata aqui, absolutamente, de prosa cavilosamente propagandística destinada a desprestigiar o Parlamento. Primeiro, porque D. Manuel sempre deu provas de querer o Parlamento prestigiado; e depois porque as linhas que citei constavam de cartas privadas, que não se destinavam a publicação.
Dito isto, temos de convir, caríssimos concidadãos, que todas estas citações nos soam arrepiantemente próximas e familiares – apesar de datarem, salvo erro, de 1908. E eis outra noção igualmente arrepiante: tal como nessa época, também hoje o nosso Parlamento não precisa, na realidade, de ser desprestigiado: ele própria se encarrega disso, gostosamente.
Por que será? Serão os ares de S. Bento? Talvez o lugar não seja propício, talvez não seja harmonioso; talvez tenha um mau feng-shui, como diriam os chineses...
...Ou talvez, afinal, e por muito que a ideia me desagrade, a nossa democracia precise de um pouquinho de músculo. Por exemplo, neste caso: em vez de descontar o dia no ordenado (castigo ridículo, convenhamos), ir logo para a perda do mandato em caso de uma só falta não justificada. Por exemplo, também neste caso: apertar um pouco mais os critérios dos motivos familiares e dos trabalhos políticos relevantes como desculpa para não ir às sessões. Não é que assim nós conseguíssemos melhores deputados – mas também, já desesperei há muito da nossa actual elite política, ou melhor; já percebi que, de momento, não a temos. Mas, pelo menos, a coisa entraria, formalmente, nos eixos; pelo menos, haveria moralidade.
Claro que estas são palavras lançadas ao vento. Nada vai acontecer, não haverá correcções ao sistema porque, evidentemente, ninguém, entre os que podem fazê-las, está interessado nelas. Isto é muito claro, penso. Teremos sempre mais do mesmo.
Por isso, já tomei uma decisão, clara e definitiva.
Quando for grande, quero ser deputado.
Porque, já que não há moralidade, então, ao menos, que comam todos, Incluindo eu.
João Aguiar
Retirado da Super Interessante, nº 98, Junho de 2006
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