Entrevista a António Marques Bessa
Como estudioso das teorias das elites ao longo da História, como classificaria aquilo que hoje temos em Portugal?
É uma pergunta muito abrangente, mas é um tipo descrito como elites oportunistas, isto é, o objectivo dessa elite não é governar ou realizar o bem público, nem tão-pouco preservar o Estado. O objectivo dessa elite, ocasional, é reproduzir-se e perpetuar-se.
Uma espécie de elites profissionais?
É verdade. No caso da política, transformam-se com o tempo numa profissão e dá origem a um conjunto de pessoas que busca manter a profissão. Por isso, quem tem esta profissão não a vai querer perder por nada e consequentemente não vai tomar decisões políticas que sejam boas para o Estado, mas que o vão, a ele, prejudicar.
Mas não é inevitável que se criem os chamados políticos profissionais?
Não é inevitável. Por exemplo, em Singapura, existe um tipo de elite política que não tem nada a haver com esta, porque não depende de qualquer tipo de eleição. O ditador de Singapura faz como entende e aquilo que entende.
Se o indivíduo trafica e fuma droga, enforca-o. Se cospe para o chão, leva chibatadas. E acabou. Isso é bom? Quem sabe? Esta gente que governa um país em função dos seus interesses nunca diz que o faz assim, pois refere sempre que governa em função de algum tipo de interesses, que são ideológicos.
Mas acha que o interesse ideológico se sobrepões ao bem comum?
Hoje, inclino-me a pensar que nem sequer há interesses ideológicos, pois, se se mudar a bandeira de um lado para o outro, vemos que caminhamos para muitas semelhanças, mas as ideologias continuam a servir de justificativo para a acção dos governantes, porque não vão simplesmente dizer que estão a governar porque o querem fazer. Parece mal.
O que me está a dizer é que o interesse pessoal da elite predomina sobre o colectivo...
Com certeza.
Mas, historicamente, isso não terá sido sempre assim?
Não, porque há épocas em que os interesses, por exemplo, religiosos ou patrióticos, prevaleceram sobre os interesses pessoais. Havia gente disposta a sacrificar a vida, a família, os filhos, os bens, em prol de objectivos que entendia como superiores. Basta lembrar a grande frase do Condestável, que Fernão Lopes narra, referindo-se à guerra com Castela, que simbolizava um poço, e ao apelo feito para saltarmos todos para dentro desse poço.
Quando é que desapareceu essa manifestação de elite?
Desaparece no momento em que a votação alarga, ou seja, quando a base de selecção da elite aumenta através da votação geral e universal. Os indivíduos que inicialmente constituíram uma elite, nã precisando de votos para nada, prosseguiam de acordo com os seus padrões de guerra e entendimento, no fundo eram donos do Estado.
A partir do momento em que se respira votos e se querem votos, tem de haver uma política direccionada e têm de obter a boa vontade pública, fazendo propostas médias e evitando sacrifícios.
Então, das duas uma, a ideia que temos de democracia representativa é contrária à formação de boas elites ou dessas elites haverá uma evolução que se coaduna já com aquilo que são os pressupostos da democracia representativa. E, neste último caso, esta elite é pior que a outra?
Um homem que foi ministro socialista da Áustria, Schumpter, e teve de emigrar para os EUA, recomendava que se misturassem as duas, uma parte eleita e outra hereditária. Para uma desequilibrar a outra. Acontece que, em muitos países, as democracias tentaram corrigir isso, pois a sociedade testa as elites, havendo controlos externos. Nós, portugueses, temos é um problema grave, pois os nossos políticos profissionais, salvo um ou outro, são indivíduos fracassados nas suas próprias profissões e, consequentemente, nunca podem ser bons políticos. E nem se pode exigir que o sejam.
Tem uma frase no seu livro (Quem Governa?) de um investigador russo, Moisei Ostrogorski, que estudou as elites norte-americanas no início do século XIX e não poupou adjectivos aos objectos do estudo, dizendo que se tratavam de "indivíduos médios, fiéis à organização, criaturas da máquina, contribuintes notáveis do aparelho, bandidos notórios, instrumentos do boss". Esta ideia que trouxe para o seu livro pode estender-se ao contexto actual nacional?
Ostrogorski enganou-se em pouco. Na realidade, dentro de um partido, tem-se visto isto tudo e até descoberto bandidos notórios que, muitas vees, não são punidos, por ineficácia da justiça. Em tudo isto há uma espécie de luva gigantesca, entram na política com uma mão atrás e outra à frente e saem com casas com piscinas, depois de desfritarem de ordenados notavelmente baixos.
São criaturas da máquina. Costumo dizer aos meus alunos que querem fazer carreira política: vá para a máquina, coloque-se na máquina, suna na máquina e avie-se. É um conselho que já tenho visto aplicado com êxito.
E as ideias como o bem comum, o trabalhar para a comunidade, o servidor do Estado?
São ideias que já morreram. Até existem pensamentos sobre isso, mas o bem comum é uma construção, porque, para um político, o bem comum é o seu bem comum.
Em Portugal há então uma falta de controlo externo das elites?
A elite política faz aquilo que a deixam fazer. Se tem uma população com uma cultura política mínima ou inexistente, não há limite para aquilo que a classe política pode fazer. E isso vê-se em coisas tão simples como o facto de, em anos de crise, a classe política ter-se reproduzido, aumentando os seus rendimentos.
Toda a gente fica escandalizada, mas nada acontece. As pessoas não têm a possibilidade de intervir e dizer "não, senhor, não queremos estes sujeitos, rua". Quem costuma fazer isto em Portugal é o Exército. Não conheço por cá nenhuma elite política que tenha conquistado o poder, conheço é revoluções e golpes de Estado militares que conquistaram o poder e o entregaram a um determinado conjunto de gente.
Há pouco tempo, Freitas do Amaral falava da existência de perigos para a democracia devido a toda esta crise que...
O professor Freitas do Amaral tem muito pouca credibilidade para falar sobre seja o que for. Quando mataram o Sá Carneito - ou ele caiu do avião? -, a primeira coisa que esse cavalheiro fez foi chegar-se à boca de um microfone e dizer que foi um acidente. Era profeta? O que ele diz não se escreve, o que ele afirma também tem pouco interesse. Escreveu um livro sobre D. Afonso Henriques que é uma verborreia espantosa, nem na praia se pode ler. Aquilo não presta.
Mas os escândalos políticos, o desinteresse e o olhar de soslaio da população para partdos e seus agentes, a abstenção nas eleições...
As pessoas começam a desinteressar-se dessas coisas, os políticos querem gente a participar e todos se estão marinbando. Se a política se tornar um jogo entre cinco ratos, deixá-los jogar.
Mas isso não representa o esgotamento do chamado modelo democrático?
Claro. O modelo democrático é apresentado como uma fórmula última, o fim da história. Não há outros modelos? As pessoas são tão cegas que não percebem que há outros modelos? Para governar pessoas e Estados. Singapura não é uma cidade-Estado?
É a segunda vez que fala de Singapura. Gostaria de lá viver?
É um sítio limpo, onde não há papéis no chão, onde ninguém rouba, onde todas as portas estão abertas e ninguém toca num bem alheio. Macau também é um novo tipo de estatalidade, Hong Kong igualmente, na época medieval não existiam cidades governadas por bispos, por príncipes, e depois?
O que me está a dizer é que podemos voltar a isso?
Claro que podemos. Depois de este sistema entrar em colapso. Tudo é uma construção.
Cultivar a ideia de elite não é algo que desperta receios, não é visto quase como... antidemocrático?
É verdade. Mas isso é uma escola realista que se cultiva na França, em Itália, nos EUA. Independentemente do que se pense as elites existem. O tipo de elite mais perigoso, ainda por cima quando em causa está uma sociedade frágil, é aquela que concentra todos os poderes: económico, militar, cultural e político. O antídoto para estas questões passa pelo desenvolvimento de uma cultura política, a massa, os cidadãos têm de ter cultura política.
Essa cultura política existe em Portugal?
A tradição é abolir a pouca cultura política que ainda existe. É entusiasmá-los com futebol e com telenovelas.
Portugal pode sobreviver, actualmente, fora da União Europeia?
Aqui há uma coisa verdadeira, ainda não tivemos essa experiência. E nunca apostámos tudo no mesmo cesto, como agora acontece. E os portugueses, quando se observa o discurso e a vida, sentem que não são europeus. Até porque cada vez temos menos contactos culturais com países mais ricos. A imigração especializada de Leste, com médicos, engenheiros e outros que estão a vir, é encaixada nas obras para construir prédios para patos-bravos.
Não aproveitamos nada deste saber. Os brasileiros foram bem mais espertos. Foram à Ucrânia e à Rússia e negociaram calmamente a vinda de físicos e químicos, compraram os aparelhos e colocaram-nos nas faculdades. Os americanos já tinham ido buscar os peritos alemães, após a II Guerra Mundial, para desenvolverem a indústria aeroespacial.
E a Espanha aqui tão perto. Os receios públicos que surgem de quando em vez têm para si razão de ser?
A Espanha não deve ser nem uma preocupação nem uma barreira. Mas o nosso primeiro-ministro dá-lhe na ideia falar espanhol, a mostrar que sabe falar castelhano. O que é que faria um político inteligente? Visitava a Catalunha e falava com os catalães, visitava a Galiza e falava com os Galegos, visitava o País Basco e falava com o partido nacionalista, visitava a Andaluzia e falava com o partido independentista e só, finalmente, ia a Madrid e falava português.
O senhor cita também o pensador Raymond Aron: "O que a teoria neomaquiavélica e a experiência ingénua igualmente confirmam é que a administração das coisas não substitui o governo das pessoas". Explique-me lá isto.
A administração das instituições, dos recursos naturais, o que se quiser, não consegue impedir que tenha de haver, para que isso funcione, uma estrutura hierárquica de uns que mandem nos outros.
Isso leva-nos, novamente, ao processo de escolha, que deveria ser racional, o melhor para o lugar em questão. E será assim?
Na administração pública, em muitos casos, não. Impera o amigo e a incompetência. Não sou eu que digo isso, é algo que recolhe quase unanimidade. A elite política nacional ainda não tem consciência de que este não é um país do terceiro mundo.
Neste momento, o debate político quase se concentra nas eleições presidenciais. Quase se desenha uma guerra na escolha dos candidatos.
Não a compreendo, porque a função do presidente é meramente decorativa, circula por aí com a primeira dama e faz a figura de reizinho. Na maior parte das vezes, faz figura de tolo. Vive num palácio e tal, parece que não pagam renda, tem uns tipos a cozinharem para eles, vão aqui e acolá.
Como é que veria um confronto Guterres/Cavaco?
É uma história antiga. A época do cavaco já passou, as pessoas ainda se lembram do Cavaquistão. O Guterres vinha da Cova da Beira, com raízes ancestrais na província, mas é um fala-barato. Os dois são um pouco pategos, indivíduos pouco ilustrados. O Cavaco parece que sabe, mas não sabe muito.
E Santana Lopes?
Não é melhor que eles. Mas é um tipo espertíssimo, mais esperto que os dois juntos. E os espertos são perigosos.
Vota nas eleições?
Pertenço ao grupo daqueles que estão muito interessados em que haja consciência por parte da elite de que há uma quantidade de pessoas muito desinteressadas de todo este teatro, em que os principais actores são eles. E ou contractam melhores actores ou o teatro fecha.
Retirado da Tempo, nº 14
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