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sábado, outubro 14, 2006

Nós, os descontentes

Setenta mil pessoas estiveram ontem na rua contra o Governo de José Sócrates, num protesto organizado pela CGTP. A manifestação serviu para mostrar o descontentamento maciço com as políticas do Governo. E que descontentamento é esse? Na lista de reivindicações dos manifestantes havia exigências corporativas (a recusa da reforma da adminis- tração pública), pruridos ideológicos (a defesa da escola pública) e posições de mera politiquice (o pedido de divulgação dos subsídios do Estado aos gestores que fizeram parte do Compromisso Portugal). Razões diversas, méritos diversos. Mas havia depois, como sempre, um desconforto e uma decepção mais profunda de quem não vê a crise desaparecer, de quem não tem expectativas, de quem perdeu o que tinha, de quem está com medo, de quem não quer pagar o preço de reformas e mudanças inevitáveis, de quem sofreu injustiças a sério e de quem finge que sofreu injustiças a sério, de quem não sabe o que fazer e de quem só não quer saber o que fazer. É precisamente sobre este descontentamento difuso, instintivo, que gostaria de falar.

Porque eu não estive ontem na rua e nada me liga ao mundo sindical e muito menos à CGTP. Nem quero fazer comparações displicentes. Só que eu, confesso, também me sinto descontente. Como os 70 mil de ontem, eu sou um descontente. E estou descontente porque também eu não sei nada do que para aí vem. Sei pouco: sei que dependo de mim, do meu trabalho, das minhas possibilidades, da minha sorte; sei que tenho de pagar a minha formação e saúde; e tenho de pensar na minha reforma e fazer os meus descontos; e usar a minha liberdade; e trabalhar mais horas e mais precariamente; e mudar de vida quando a vida me desiludir. E hei-de queixar-me sempre, provavelmente, tantas vezes como agora me queixo.

Eu sei disso. E também não gosto disso. Eu sou um descontente porque também eu preferia um mundo em que a segurança, a certeza e a protecção prevalecessem. Quem, se puder escolher, não prefere? Mas já não é possível escolher. As facilidades do passado não são repetíveis. Não se evita a realidade.

Pedro Lomba

Retirado do Diário de Notícias, 14 de Outubro de 2006.