De mal com Israel por amor do Líbano e de mal com sírios e iranianos por amor da democracia pluralista e anti-fundamentalista
De boas intenções, continua a estar o inferno das nossas guerras cheio, com destaque para parte significativa dos nossos gongóricos analistas de política internacional, especialistas na ciências dos prognósticos depois do jogo findo. Porque quem ousa mergulhar nas arriscadas ondas da conjuntura, apesar de poder ser arrastado por uma vaga imprevista, raramente tem ciência certa , muito menos daquela que é subsidiada pelo poder absoluto da ordem estabelecida. Só que pode seguir o bom conselho dos velhos, mas não antiquados mestres que, parafraseando o bom Padre António Vieira, sempre misturaram o lume da razão com o lume da profecia, mesmo sem necessidade de bruxarias anti-semitas ou anti-islâmicas. Só poderemos navegar à volta do nosso mundo de forma flexível, se tivermos uma rota de princípios e conseguirmos vislumbrar o sol de frente, decifrando os sinais do tempo.
Tanto devemos denunciar o terrorismo dos poderes erráticos como o terrorismo de Estado, nomeadamente a persistente aplicação de técnicas de guerrilha pelos burocratas da razão de Estado, nomeadamente os que continuar a perfilhar a tese segundo a qual os fins justificam os meios, quando são sempre os meios que justificam um certo fim. Até porque o adversário, profundamente conhecedor de tal técnica do realismo, pode entrar nos requintes da dissimulação combatente.
Numa guerra não está apenas em causa o choque de forças brutas sobre uma terra de ninguém ou uma terra previamente queimada. Em qualquer teatro de operações, há sempre aldeias, vilas e cidades, bem como populações, gentes, multidões e pessoas. E há também, de um lado e de outro, choques de pensamentos e ideias, num jogo onde normalmente perde o que julga deter o monopólio da inteligência, subestimando o outro, isto é, o que é normalmente o diferente, ou o que está mais longe das nossas concepções do mundo e da vida.
Seria interessante que, face à presente crise, os nossos analistas fossem além das glosas e comentários aos vanguardismos da CNN e da Sky-News, tendo a prudência de se munirem com um qualquer intérprete de árabe que lhes desse a perspectiva do que consideram o lado de lá. Assim, até poderiam comunicar-nos como a coisa está a ser transmitida e opinada para as multidões árabes e islâmicas que, do Magrebe à Indonésia, também consomem quotidianamente o drama. Urge ultrapassar a parte que tornaram visível deste "iceberg", sentindo os outros, os que são diferentes do nosso humanismo laico e do nosso humanismo cristão, procurando outros mundos do nosso próprio mundo. O que não está nas "breaking news" pode também ser notícia.
Nesta guerra de informação e contra-informação, em que nos querem fazer a todos contendores, mesmo aqueles meios de comunicação que têm a ilusão de ser isentos acabam por estar dependentes dos armazéns de informação fornecida por suspeitos grossistas dos serviços secretos e das agências oficiosas que a utilizam como arma de guerra. Entre o porta-voz do Hezbollah que faz visitas guiadas aos técnicos da psico que colocam os nossos repórteres de guerra em postos de recolha de imagem previamente articulados pelo processo de controlo da informação, que venha o Diabo e escolha...
Daí o logro daquela hiper-informação que nos vai inundando com notícias secundárias ou repetindo pormenorizadas descrições de indícios banais, onde a floresta dos dados, muitas vezes, apenas pretende desviar a atenção relativamente ao essencial das movimentações que vai circulando por trás das cortinas do visível. O nosso palco dos destaques é curto demais, face aos breves minutos de uma parangona, que é incompatível com a reflexão. Por mim, continuo de mal com Israel por amor do Líbano e de mal com sírios e iranianos por amor da democracia pluralista e anti-fundamentalista. Até porque quando um processo destes atinge a turbulência do "out of control", o crime parece sempre compensar e torna-se bem estreito o espaço dos homens livres e da força da razão.
Aliás, o consumidor da informação de guerra tem sede de sangue sensacionalista e gosta de excitar-se em "voyeurismo" com buracões de bombas e filas de refugiados que procuram escapar ao inferno. Porque assim poderemos estar a alimentar aquilo que Hannah Arendt qualificou como a banalidade do mal que sempre foi uma das mais maléficas e massificadas consequências da própria guerra, nesta aldeia pretensamente global da ilusão hiper-informada a que estamos condenados.
Todos carregamos dentro de nós um pedaço desse lado pútrido da natureza humana, aquela parcela de lodo onde assentámos os pés, mas donde também podemos olhar as estrelas. E todos persistimos em ver o mundo desse lastro de mal que nunca conseguiremos extirpar e onde até quem quer ser anjo acaba por tonar-se a habitual besta das sonoridades sem sentido.
O poder e a consequente guerra que ele gera e que por ele é gerada são constantes em permanente tensão dialéctica com o lado divino desta mistura que nos faz homens. Sempre em equilíbrio instável, entre a procura do paraíso e a matreirice paisana. Há coisas que todos temos medo de dizer, imagens proibidas que nos sobressaltam os sonhos, coisas que nos vão zurzindo a memória e que todos temos receio de verbalizar. Porque, entre as mãos de medo e os filamentos de sonho, apenas sabemos que temos de continuar a viajar por dentro dessa procura, tecendo a esperança. Há sempre restos de um bom tempo por cumprir e, grão a grão, podemos lançá-los numa corrente libertadora, para que naveguemos o mar sem fim que já foi português.
José Adelino Maltez
Retirado do Sobre o tempo que passa. J.A. Maltez está na Magazine Grande Informação.
Tanto devemos denunciar o terrorismo dos poderes erráticos como o terrorismo de Estado, nomeadamente a persistente aplicação de técnicas de guerrilha pelos burocratas da razão de Estado, nomeadamente os que continuar a perfilhar a tese segundo a qual os fins justificam os meios, quando são sempre os meios que justificam um certo fim. Até porque o adversário, profundamente conhecedor de tal técnica do realismo, pode entrar nos requintes da dissimulação combatente.
Numa guerra não está apenas em causa o choque de forças brutas sobre uma terra de ninguém ou uma terra previamente queimada. Em qualquer teatro de operações, há sempre aldeias, vilas e cidades, bem como populações, gentes, multidões e pessoas. E há também, de um lado e de outro, choques de pensamentos e ideias, num jogo onde normalmente perde o que julga deter o monopólio da inteligência, subestimando o outro, isto é, o que é normalmente o diferente, ou o que está mais longe das nossas concepções do mundo e da vida.
Seria interessante que, face à presente crise, os nossos analistas fossem além das glosas e comentários aos vanguardismos da CNN e da Sky-News, tendo a prudência de se munirem com um qualquer intérprete de árabe que lhes desse a perspectiva do que consideram o lado de lá. Assim, até poderiam comunicar-nos como a coisa está a ser transmitida e opinada para as multidões árabes e islâmicas que, do Magrebe à Indonésia, também consomem quotidianamente o drama. Urge ultrapassar a parte que tornaram visível deste "iceberg", sentindo os outros, os que são diferentes do nosso humanismo laico e do nosso humanismo cristão, procurando outros mundos do nosso próprio mundo. O que não está nas "breaking news" pode também ser notícia.
Nesta guerra de informação e contra-informação, em que nos querem fazer a todos contendores, mesmo aqueles meios de comunicação que têm a ilusão de ser isentos acabam por estar dependentes dos armazéns de informação fornecida por suspeitos grossistas dos serviços secretos e das agências oficiosas que a utilizam como arma de guerra. Entre o porta-voz do Hezbollah que faz visitas guiadas aos técnicos da psico que colocam os nossos repórteres de guerra em postos de recolha de imagem previamente articulados pelo processo de controlo da informação, que venha o Diabo e escolha...
Daí o logro daquela hiper-informação que nos vai inundando com notícias secundárias ou repetindo pormenorizadas descrições de indícios banais, onde a floresta dos dados, muitas vezes, apenas pretende desviar a atenção relativamente ao essencial das movimentações que vai circulando por trás das cortinas do visível. O nosso palco dos destaques é curto demais, face aos breves minutos de uma parangona, que é incompatível com a reflexão. Por mim, continuo de mal com Israel por amor do Líbano e de mal com sírios e iranianos por amor da democracia pluralista e anti-fundamentalista. Até porque quando um processo destes atinge a turbulência do "out of control", o crime parece sempre compensar e torna-se bem estreito o espaço dos homens livres e da força da razão.
Aliás, o consumidor da informação de guerra tem sede de sangue sensacionalista e gosta de excitar-se em "voyeurismo" com buracões de bombas e filas de refugiados que procuram escapar ao inferno. Porque assim poderemos estar a alimentar aquilo que Hannah Arendt qualificou como a banalidade do mal que sempre foi uma das mais maléficas e massificadas consequências da própria guerra, nesta aldeia pretensamente global da ilusão hiper-informada a que estamos condenados.
Todos carregamos dentro de nós um pedaço desse lado pútrido da natureza humana, aquela parcela de lodo onde assentámos os pés, mas donde também podemos olhar as estrelas. E todos persistimos em ver o mundo desse lastro de mal que nunca conseguiremos extirpar e onde até quem quer ser anjo acaba por tonar-se a habitual besta das sonoridades sem sentido.
O poder e a consequente guerra que ele gera e que por ele é gerada são constantes em permanente tensão dialéctica com o lado divino desta mistura que nos faz homens. Sempre em equilíbrio instável, entre a procura do paraíso e a matreirice paisana. Há coisas que todos temos medo de dizer, imagens proibidas que nos sobressaltam os sonhos, coisas que nos vão zurzindo a memória e que todos temos receio de verbalizar. Porque, entre as mãos de medo e os filamentos de sonho, apenas sabemos que temos de continuar a viajar por dentro dessa procura, tecendo a esperança. Há sempre restos de um bom tempo por cumprir e, grão a grão, podemos lançá-los numa corrente libertadora, para que naveguemos o mar sem fim que já foi português.
José Adelino Maltez
Retirado do Sobre o tempo que passa. J.A. Maltez está na Magazine Grande Informação.
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