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terça-feira, julho 18, 2006

"Disseram-me que aqui havia liberdade!"


Fui há dias ao cais dos navios de longo curso. Na sala de espera vi grande número de orientais de todas as idades. Junto à porta um senhor idoso, que percebi ser o patriarca do grupo, explicou-me que ia levar a família para um país livre. Viera da China à procura de liberdade mas, como se enganara, ia para outras paragens. Mostrei estranheza por esta sua afirmação e ele explicou "Disseram-me que este país tinha grande amor à liberdade porque, tal como o meu, vivera sob ditadura muitos anos mas depois tivera uma revolução. Afinal não é assim. Simplesmente enganei-me. Não quero ofender ninguém, nem estou zangado. Vou-me embora."

Ele, vendo-me indignado, comentou "Disseram-me que esta era uma economia livre, onde cada um se podia esforçar por satisfazer os clientes. Mas a minha loja foi criticada e agredida só porque tinha preços baixos, horários alargados e vendia muito. Os outros lojistas, como gostam de descansar, zangaram-se connosco por trabalharmos. Não nos conhecem, mas inventaram histórias horríveis sobre nós. Os sindicatos atacaram-nos porque os meus familiares querem trabalhar mais. Parece que não se pode. Depois vieram as autoridades. Sabe quantos decretos, portarias, regulamentos, é preciso cumprir para ter uma loja aberta? Os fiscais encontram sempre coisas para multar ou proibir. Era assim também na China. Foi por isso que saímos de lá."

Expliquei-lhe que essas são as leis dos países civilizados. A economia é livre, mas nós queremos essas regras. Ele sorriu e respondeu "Não me parece que sejam assim tão civilizados se precisam de tantas limitações. Se querem mesmo essas condições, porque não as cumprem livremente e precisam de as impor nas leis? Acho muito estranho que se use a liberdade para eliminar a própria liberdade!" Ele continuou: "Cometi um crime porque as etiquetas dos produtos não obedeciam às regras estabelecidas. Como os tribunais assumem que os empresários são todos criminosos, condenam sempre. De onde vim também era assim."

Retorqui que as leis, inspectores, sindicatos e tribunais servem para nos proteger dos abusos. É para nosso bem que somos limitados pelas leis. "Mas isso é exactamente como na China", contrapôs ele. "Lá também há imensos funcionários que sabem melhor do que nós o que nós queremos e estão sempre prontos a proteger-nos de nós mesmos. Foi assim que nos tiraram a liberdade. Por isso saí de lá."

"A comida que nós comemos não pode ser vendida porque não respeita as vossas condições sanitárias. Disseram-me que até alguns dos vossos pratos tradicionais estão proibidos pela mesma razão. Grande liberdade! Há uns meses comprei um carro", continuou. "Pensava que num país livre isso era o suficiente para poder andar. Mas depois descobri que tinha de comprar também coletes, cintos de segurança, cadeirinhas. Os limites à circulação são tantos que é impossível cumprir todos. A estrada é mais livre na China. Acabei por vender o carro para pagar a multa porque eu não tinha a licença para atropelar." Depois de várias perguntas acabei por perceber que falava do seguro.

"Mas aqui há liberdade de pensamento!", disse eu. O homem fez uma cara triste e respondeu "Aqui dão-me liberdade para pensar? Mas isso foi a única coisa que o Governo nunca me tirou na China. Pensar é sempre livre."

"Pode dizer e escrever tudo o que pensa, fazer um partido para defender essas ideias!" Ele respondeu "Posso mesmo? Já leu algum jornal que diga estas coisas? Que aconteceria a esse meu partido, se eu o fizesse? A vossa liberdade é só para pensar o que todos pensam. Os que pensam diferente, são considerados malucos ou criminosos e deixam de contar." Não soube o que responder. Ele disse: "Li agora que vos querem dar a liberdade de abortar. Essa tínhamos na China. Engraçado como eles nos dão sempre liberdade para matar, não é?" Ficámos em silêncio. Soou uma sirene. Ele despediu-se e, à saída, ainda perguntou: "Pode indicar-me um país que seja mesmo livre?" Eu estava demasiado deprimido para responder.

João César das Neves

Retirado do Diário de Notícias, 15 de Abril de 2005