O que sobra do exército colonial
Perante a já tradicional apatia, ou excesso de escrúpulos, da imprensa neste tipo de matérias, o Presidente da República manteve, na semana passada, diversos contactos com as chefias das Forças Armadas e com o Governo, ao mesmo tempo que as associações de militares anunciavam para breve novas acções de protesto contra as alterações nos respectivos estatutos que aguardam promulgação em Belém.
Boa parte da opinião pública olha para as actuais reivindicações dos militares com desconfiança e como se fossem uma espécie de rebate fora de tempo. Numa altura em que a contenção é palavra de ordem para todo o aparelho de Estado, e em que os funcionários públicos são confrontados com medidas draconianas, em particular no que respeita às progressões na carreira e à idade de reforma, as queixas que, por motivos mais ou menos idênticos, chegam das Forças Armadas dir-se-ia soarem a pretensão deslocada e a dificuldade em aceitar a perda de regalias. Mesmo sem o dizer, a maioria das pessoas pensa mais ou menos isto e espera que os militares, em coerência com a delicadeza das suas funções, retornem rapidamente ao silêncio e à discrição que estas exigem, apertando o cinto e conformando-se com o seu quinhão de crise, como fazem os outros.
Uma tal opinião, compreensivelmente aceite nas actuais circunstâncias, corre, no entanto, o risco de dificultar a necessária ponderação do estatuto das Forças Armadas num país como Portugal, na exacta medida em que facilita pontualmente as decisões dos governos. Dito de outro modo, aplaude qualquer medida que vá no sentido da redução de custos militares, independentemente dos estragos que isso possa trazer à eficácia das Forças Armadas. Não quer dizer, felizmente, que os governos alguma vez se tenham socorrido de semelhante ideia, quando têm de abordar assuntos desta área. Mas é, com certeza, uma ideia comummente aceite e que, de tão radical na aparente superficialidade com que trata os problemas da defesa, constitui um estímulo para a tentação de se economizar por essa via.
A verdade é que as Forças Armadas foram, nos últimos 30 anos, pretexto para sucessivos mal-entendidos. Vítimas da dimensão que atingiram por força da guerra colonial, carregando às costas o ónus de ter, primeiro, sustentado um regime ditatorial e feito, depois, uma Revolução, com todas as vítimas que uma e outra coisa implicaram no espaço de apenas algumas décadas, viram-se depois progressivamente reduzidas e incompreendidas. Actualmente, elas são um corpo profissionalizado, para o preen- chimento de cujos quadros é cada vez mais frequente o recurso à publicidade, mas quando as suas chefias aparecem em público é, em geral, para evidenciar a escassez dos meios de que dispõem. E, de cada vez que se fala num investimento mais vultuoso, a demagogia circundante puxa da calculadora e vem logo dizer quantas escolas e hospitais não se fariam por esse preço.
Até há pouco mais de uma década, embora a redução dos efectivos e dos meios estivesse a efectuar-se, a imagem das Forças Armadas foi, no essencial, preservada e o seu papel compreendido. Por mais dramas que tivesse ocasionado na sequência da revolução, e por mais polémica que tenha sido a intervenção na política deste ou daquele oficial, a instituição em si mesma mantinha-se intocável por todos os quadrantes ideológicos. Foi assim possível proceder, primeiro, ao chamado retorno aos quartéis, depois, à reestruturação que veio a colocar as Forças Armadas tal como hoje se encontram. Nos últimos anos, porém, a situação económica, por um lado, e um certo pacifismo mais ou menos explícito, por outro, estimularam na opinião pública uma sensação crescente de incompreensão face ao papel e, sobretudo, face às despesas dos militares. Daí a crescer nas oposições a tentação de explorar esse sentimento e nos governos o receio de clarificar e assumir a importância e os custos da instituição, foi um passo. Para uns, ainda são privilegiados. Para outros, tornaram-se apenas tolerados. É essa clarificação, independentemente de problemas conjunturais, como aqueles que parece estarem agora a verificar-se, que conviria fazer quanto antes, tanto na esfera política como na esfera cívica.
Diogo Pires Aurélio
Retirado do Diário de Notícias, 11 de Setembro de 2005.
Boa parte da opinião pública olha para as actuais reivindicações dos militares com desconfiança e como se fossem uma espécie de rebate fora de tempo. Numa altura em que a contenção é palavra de ordem para todo o aparelho de Estado, e em que os funcionários públicos são confrontados com medidas draconianas, em particular no que respeita às progressões na carreira e à idade de reforma, as queixas que, por motivos mais ou menos idênticos, chegam das Forças Armadas dir-se-ia soarem a pretensão deslocada e a dificuldade em aceitar a perda de regalias. Mesmo sem o dizer, a maioria das pessoas pensa mais ou menos isto e espera que os militares, em coerência com a delicadeza das suas funções, retornem rapidamente ao silêncio e à discrição que estas exigem, apertando o cinto e conformando-se com o seu quinhão de crise, como fazem os outros.
Uma tal opinião, compreensivelmente aceite nas actuais circunstâncias, corre, no entanto, o risco de dificultar a necessária ponderação do estatuto das Forças Armadas num país como Portugal, na exacta medida em que facilita pontualmente as decisões dos governos. Dito de outro modo, aplaude qualquer medida que vá no sentido da redução de custos militares, independentemente dos estragos que isso possa trazer à eficácia das Forças Armadas. Não quer dizer, felizmente, que os governos alguma vez se tenham socorrido de semelhante ideia, quando têm de abordar assuntos desta área. Mas é, com certeza, uma ideia comummente aceite e que, de tão radical na aparente superficialidade com que trata os problemas da defesa, constitui um estímulo para a tentação de se economizar por essa via.
A verdade é que as Forças Armadas foram, nos últimos 30 anos, pretexto para sucessivos mal-entendidos. Vítimas da dimensão que atingiram por força da guerra colonial, carregando às costas o ónus de ter, primeiro, sustentado um regime ditatorial e feito, depois, uma Revolução, com todas as vítimas que uma e outra coisa implicaram no espaço de apenas algumas décadas, viram-se depois progressivamente reduzidas e incompreendidas. Actualmente, elas são um corpo profissionalizado, para o preen- chimento de cujos quadros é cada vez mais frequente o recurso à publicidade, mas quando as suas chefias aparecem em público é, em geral, para evidenciar a escassez dos meios de que dispõem. E, de cada vez que se fala num investimento mais vultuoso, a demagogia circundante puxa da calculadora e vem logo dizer quantas escolas e hospitais não se fariam por esse preço.
Até há pouco mais de uma década, embora a redução dos efectivos e dos meios estivesse a efectuar-se, a imagem das Forças Armadas foi, no essencial, preservada e o seu papel compreendido. Por mais dramas que tivesse ocasionado na sequência da revolução, e por mais polémica que tenha sido a intervenção na política deste ou daquele oficial, a instituição em si mesma mantinha-se intocável por todos os quadrantes ideológicos. Foi assim possível proceder, primeiro, ao chamado retorno aos quartéis, depois, à reestruturação que veio a colocar as Forças Armadas tal como hoje se encontram. Nos últimos anos, porém, a situação económica, por um lado, e um certo pacifismo mais ou menos explícito, por outro, estimularam na opinião pública uma sensação crescente de incompreensão face ao papel e, sobretudo, face às despesas dos militares. Daí a crescer nas oposições a tentação de explorar esse sentimento e nos governos o receio de clarificar e assumir a importância e os custos da instituição, foi um passo. Para uns, ainda são privilegiados. Para outros, tornaram-se apenas tolerados. É essa clarificação, independentemente de problemas conjunturais, como aqueles que parece estarem agora a verificar-se, que conviria fazer quanto antes, tanto na esfera política como na esfera cívica.
Diogo Pires Aurélio
Retirado do Diário de Notícias, 11 de Setembro de 2005.
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