"Não sei se a direita e a esquerda são reformáveis"
Num país de raras obras biográficas, Vasco Pulido Valente teima em cultivar o género, desta vez com uma obra sobre Paiva Couceiro (1861-1944), um católico conservador que combateu o rotativismo monárquico, a I República e o salazarismo. O autor confessa-se atraído por figuras quixotescas. Diz já não ter idade para escrever uma biografia de Salazar, a quem aliás não reconhece méritos. Em alternativa, prepara um ensaio sobre a cultura política portuguesa nos séculos XIX e XX.
O que o levou a interessar-se pela figura de Henrique Paiva Couceiro?
Tinha há muito o projecto de elaborar três biografias - de João Franco, Marcelo Caetano e Paiva Couceiro - por serem representantes de várias direitas que o salazarismo acabou por absorver ou eliminar. Para mostrar que a história da direita é bastante mais heterogénea do que se pensa. João Franco representou uma esperança de monarquia liberal, Paiva Couceiro apresentou uma ideia de império completamente diferente da salazarista e Marcelo Caetano representou desde o início uma tendência de liberalização dentro do regime, numa tentativa de modernização da ditadura.
O que mais o surpreendeu especificamente em Paiva Couceiro?
A ingenuidade, que chega a extremos, às vezes à mistura com uma grande inteligência política, sobretudo quanto à estratégia que ele tinha para o império [colonial].
A pesada marca do salazarismo ainda hoje impede a expansão em Portugal de uma direita democrática?
Os problemas da direita são hoje completamente diferentes. A direita não é hoje passadista e paralisante como era a direita do regime de Salazar. Já nem o próprio Marcelo foi: no consulado dele houve uma certa modernização do País.
A direita é reformável?
Não sei se a direita e a a esquerda são hoje inteiramente reformáveis. O grande problema das sociedades contemporâneas no Ocidente é o papel que o Estado mantém. O Estado vai absorvendo cada vez mais as energias, a capacidade de trabalho e a inteligência da sociedade, deixando uma faixa cada vez mais estreita à iniciativa privada, sobretudo à iniciativa privada económica. O problema da esquerda e da direita é o mesmo: as diferenças declaradas que existem são sobre a maneira de gerir o Estado. Em última análise põe-se o problema da redução do papel do Estado, que é uma questão comum à esquerda e à direita. Fecha-se uma maternidade em Vila Velha sem condições de funcionar e o povo vem para a rua. Todas as tentativas, por mais inócuas e racionais que sejam, levantam resistências. Portanto os governos vão mantendo o Estado mais ou menos como está...
Os conceitos de esquerda e direita ainda têm razão de ser?
Sim. Há um papel na promoção da igualdade social que o Estado nunca deve abandonar. Isto é um ponto de vista da esquerda. O "Estado mínimo" é um ponto de vista da direita. Não sou partidário do Estado mínimo.
Paiva Couceiro foi um destacado "africanista". Durante anos, a direita portuguesa considerou que o destino nacional estava ligado à sobrevivência do império. Havia algum fundo de verdade nesta ideia?
Paiva Couceiro não era partidário do império tal como existia. Defendia, por exemplo, o abandono de Moçambique e da Guiné. Defendia uma colonização só em Angola, com a conservação simultânea de Cabo Verde e São Tomé, para apoio logístico, o que era muito diferente do que Salazar defendia. Era um projecto muito mais racional.
Ele era um visionário?
O problema era não haver então em Portugal capital suficiente para desenvolver Angola nos termos que ele preconizava. Era preciso construir estradas, portos, caminhos-de-ferro, era preciso investir na agricultura, nos serviços, na indústria...
Era uma personalidade muito contraditória. Perto do fim da vida, enquanto se assumia como opositor de Salazar, chegou a fazer elogios a Hitler e Mussolini...
Esses elogios eram mais por reflexo antijacobino, antiliberal e anti-republicano do que propriamente por alguma admiração que tivesse por Hitler e Mussolini. De tal maneira que foi um anglófilo convicto durante a II Guerra Mundial.
Nesta obra, volta a fazer - embora só em esboço - um retrato impiedoso da I República, tema do seu livro O Poder e o Povo. Esse período (1910-26) foi assim tão negativo?
A I República foi uma ditadura. Pelo menos até ao consulado de Sidónio Pais [1917] foi uma ditadura jacobina, que tinha as cadeias cheias, destruía jornais, prendia pessoas sem julgamento ou bania-as arbitrariamente do território português. Não trouxe ao País nada de bom.
Gostaria de biografar Salazar?
Para isso já não tenho idade. Estou a preparar um ensaio sobre a cultura política portuguesa nos séculos XIX e XX.
Salazar é uma das figuras de referência de Portugal no século XX?
Com certeza que sim. Governou o País durante 40 anos!
É uma figura de referência só pela negativa ou também tem aspectos positivos?
Para mim, Salazar não tem praticamente nenhum aspecto positivo.
Retirado do Diário de Notícias, 03 de Julho de 2006
4 Comments:
"Para mim, Salazar não tem praticamente nenhum aspecto positivo."
Citando o Sábio dos sábios:
"Pai, perdoai-os, eles não sabem o que dizem".
Com a devida correção...
Pobre VPV! É igualzinho aos "direitinhas", só que não gosta de ir ao café! Prefere outros líquidos! Lê tanto, mas nunca justifica nada!
Estes ex-burgessos de extrema-esquerda, reciclados em novos-burgueses da 'direitinha', ficam assim.
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