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terça-feira, julho 11, 2006

A nova Batwoman será lésbica


Foi um artigo no Jornal de Notícias de 10 de Junho de 2006 que me despertou para a candente questão. “Importância das minorias chega aos super-heróis: CD Comics e Marvel apostam em heróis latinos, negros e chineses e nova Batwoman será lésbica!, anunciava o artigo assinado por Pedro Cleto.

A Inspecção Geral da Correcção Política tem lançado acções de fiscalização a todos os sectores de actividade e a banda desenhada não poderia deixar de ser alvo de atenção. O que é grave é que o sector está muito mal posicionado na equitativa representação de géneros e etnias, dado que durante décadas o seu público foi quase exclusivamente masculino e branco. Concomitantemente, os seus autores também foram quase exclusivamente masculinos e brancos e foram dando largas à sua eurocêntrica e falocêntrica Weltasnchaung. Já se está a ver o resultado deste prolongado enviesamento: a mulher e as várias etnias estão desfavoravelmente representadas ao longo da história da BD. E quando surgem, o seu papel raramente é lisongeiro. O sexo feminino desempenha quase sempre o papel de “mulher-objecto” tão trasbordante de curvas e erotismo como falha de autonomia e personalidade – confira-se o modelo nos sucessivos “Clics” de Milo Manara. O negro, espírito simples e ingénuo, é adequado a desempenhar papéis subalternos que requeiram bastante força mas pouco raciocínio – e aqui o arquétipo é o possante Lotário que presta musculada assessoria a Mandrake e provavelmente também lhe engomará a capa e manterá a cartola luzidia.

Quanto a orientações sexuais, a BD não ofereceu mais alternativas do que um impresso de IRS: M ou F. A BD era vista como tendo por destinatário o público infantil e convinha nãos conspurcar o imaginário das loiras cabecinhas com outras possibilidades de acoplagem.

Quanto a etnias outras que não os maltratados africanos, serviam apenas para conduzir lamas, executar a dança da chuva, encantar serpentes, ou reclinar-se em camas de pregos.

Estando consciente das minhas próprias faltas como criador de BD e possuindo uma inclinação natural à subserviência e à conformidade com a moral vigente, deitei-me a pensar no que poderia fazer para, nos meus livros, “ensinar o direito à diferença e a importância de uma saudável integração de todos”.

Mas não basta estar animado das melhores intenções: logo de entrada esbarrei com múltiplas e inultrapassáveis dúvidas quanto a algo tão objectivo como as quotas de representação de etnias em obras de ficção. Sendo eu português, deverão as personagens dos meus livros representar a composição étnica do meu país, ou seja, deverei adicionar um número razoável de africanos (digamos, um para cada dez brancos) e polvilhar com ucranianos e moldavos? Vivendo eu no Algarve, deverei dar menor quota a africanos do que um autor que resida na Amadora? Ou deverei observar as proporções vigentes a nível mundial e fazer com que em cada duas das minhas personagens, uma seja indiana ou chinesa? E deverei atribuir às personagens funções condizentes com a distribuição preponderante na realidade social portuguesa, por exemplo, empregando os moldavos na construção civil, colocando os chineses atrás do balcão de lojas de bugigangas, os indianos a vender flores? Ou será isto a perpetuação de um estereótipo ou, mais grave, o sancionamento de um estigma social?

Nunca esperei que a responsabilidade social levantasse tão espinhosas questões. Era mais fácil quando produzia entretenimento escapista.

José Carlos Fernandes

Retirado da Os Meus Livros, 04 de Julho de 2006