O quarto escuro
Há coisas que não se percebem. Na Blogosfera há várias. O meio é propício a que aconteçam umas coisas estranhas e outras mesmo estranhíssimas, mas há uma que está generalizada e é permanente na blogosfera lusitana, autores de blogues, leitores e comentadores acabam sempre por querer conhecer-se. Tenho andado a pensar nisto; mais precisamente, há três anos que o faço. Mas que coisa vem a ser esta de nos querermos todos conhecer e ver e almoçar ou jantar com e tomar café com? Será um uso ou um costume tipicamente português?
Em Portugal não há espaço, é certo. Uma pessoa dá um passinho e pumba: dá por ela às cavalitas do João Pedro George, ao colo do Luís Osório ou com a cara colada à da Joana Amaral Dias. Precisamente por já não ser possível sair à rua, havia alguma esperança de liberdade no espaço virtual, sem ruas nem restaurantes. Mas não: continuamos todos à mesa uns com os outros, sendo que este “uns” e este “outros” se misturam e chegam a ser os mesmos. Como pode haver liberdade, espírito crítico ou autonomia de pensamento, quando estamos afinal desejosos por vermos a cara e ouvirmos a voz de quem escreve “aquelas coisas” todos os dias? Uma fotografia não resolve o assunto? Temos mesmo de jantar, de sermos amigos e de nos aborrecermos uns com os outros inevitavelmente?
Alguém uma vez defendeu que os blogues deviam ser todos anónimos. Até sou capaz de concordar com grande disponibilidade e alegria. Mas é verdade que me custa, porque se fossemos todos anónimos como poderia explicar com à-vontadíssima que a atormentada não não-sei-quantas escreve aquelas coisas sombrias porque é sobrinha da não-sei-quantas e, coitada, apesar de tudo, muito boa está ela? Não podia e isso impediria uma interpretação de texto estroina e impertinente, embora nenhum mal viesse ao mundo, uma vez que seria uma abordagem psicologista e antiquada.
Dando uma no cravo e outra no blogueador, a biografia (atrelada a alguns nomes) pode ajudar à interpretação, mas arrasa com a liberdade e o espírito crítico, tanto do autor como do leitor, ambos portugueses, entenda-se. Se o Abrupto fosse um blogue anónimo, seria mais compreendido? Se o Arrastão fosse um blogue anónimo, despertaria mais curiosidade? Se o Causa Nossa fosse um blogue anónimo, seria ainda mais ignorado? Dando uma no blogueador e outra na ferradura, o anonimato parece positivo porque, quando o blogue é bom, a inexistência da biografia pode criar a ilusão de que quem o escreve é “profissional” e “conhecido”; mas, quando o blogue não presta, retira-lhe autoridade e nivela-o por baixo, passo o pleonasmo; ou seja, é mais um que para ali anda. Pensar assim não é bom por uma razão óbvia: a qualidade da escrita é independente do nome do autor, da sua profissão, dos seus laços familiares ou de amizade. Sim: mesmo em Portugal.
Quando era míuda, gostava de brincar às escondidas e ao quarto escuro. Tenho pensado se será por isso que gosto de blogues anónimos. Não falo, naturalmente, daqueles actualizados à custa de ódio, inveja e ressentimento, e cujos textos devem ser remetidos para o caixote de lixo (juntamente com os respectivos autores), mas dos outros, em que observamos algo original, além de uma escrita clara e atractiva. Em suma, blogues de pessoas interessadas em “fazer a sua própria coisa” (a banda sonora para a expressão entre aspas deverá ser o tema “Do Your Thing”, dos Basement Jaxx). Como exemplo, destaco os seguintes blogues anónimos: Blogame Mucho (blogamemucho.blogspot.com); Guarda-Factos (guarda_factos.blogspot.com); Impensável (impensavel.blogspot.com); O Jansenista (jansenista.blogspot.com) e Triciclofeliz (triciclofeliz.livejournal.com).
O desconhecido, repugnante para muitos, pode funcionar como um estímulo para quem gosta de ler e acompanhar o que se escreve na blogosfera anónima. Mas só se houver... confiança. Há que acreditar que o anónimo, depois de ver o seu blogue lincado ou posto (em sossego) num qualquer destaque de um blogue com o nome quase todo, não nos trata mal. Oblogueador bem intencionado deixa o autor anónimo à solta, observando as suas reacções, a forma como se refere aos outros, os temas sobre os quais escolhe escrever e o tom com que o faz. A interpretação é o momento em que se acende a luz no quarto escuro da blogosfera (para logo depois voltar a ser apagada). O jogo pode demorar anos e anos e anos...
Carla Hilário Quevedo
Retirado da Atlântico, nº 16, Julho de 2006
Carla Hilário Quevedo está no Bomba Inteligente.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home