O Papa e o profeta
Acusá-lo [Bento XVI] de começar uma cruzada é ler ao contrário o que foi dito.
Em discurso erudito (que poucos leram), na Aula Magna da sua antiga Universidade de Regensburg, Bento XVI tocou um tema querido: pode a religião ser contrária à razão?
Em várias passagens, cita controvérsias mortais dentro do pensamento ocidental, do Cristianismo, e da própria Igreja Católica. Explica, por exemplo, que a tentativa de retirar à última a herança helenística esteve na origem da consideração da fé como um mecanismo separado da realidade. Lembra, porém, que quando se diz, na (primeira) versão grega dos Evangelhos, “Ao Princípio era o Verbo” (Logos), isso significa “no começo era a razão e a palavra”.
O logos, a palavra da razão, que consubstancia a verdade, apela ao espírito. Já a guerra se joga para o corpo. Nesse sentido, a guerra é ‘irracional’, ao mesmo tempo que imoral. Citando Manuel II Paleólogo, em 1391, usa uma passagem traduzida por Theodore Khoury, explicando que, para o espírito helenístico do imperador bizantino, cercado em Constantinopla, parece “errado, injusto e desumano” que o Islão defenda a guerra, contra a razão.
Devastadora, a citação usa-se como mero exemplo, numa discussão teológica que, em vários pontos, é também demolidora para as teorias cristãs da ‘guerra justa’.
Joseph Ratzinger não é nem uma estrela de cinema, nem um presidente, nem um director de relações públicas. O seu tempo é próprio, e isso pode trazer problemas aos que esperam espectáculo. Mas acusá-lo de começar uma cruzada é ler ao contrário o que foi dito.
Erros e (o)missões
Ahmed Rashid, autor de uma boa história dos Taliban, explica que, durante três anos, as zonas tribais do Waziristão foram deixadas ao deus-dará, depois da fuga de bin Laden da sua fortaleza em Tora Bora, no fim de 2001. Foi precisamente aí, sem lei nem ordem, e sobretudo sem exército paquistanês, que a coligação entre a al-Qaeda e os ‘estudantes de teologia’ do mullah Mohamad Omar, se reconstruiu.
Fez novos adeptos, recriou os circuitos de recrutamento, fornecimento de armas e financiamento, reabriu as zonas de passagem para o Sul e Oriente do Afeganistão e, em suma, preparou a reconquista do poder. Ao mesmo tempo que isto se passava, a atenção estratégica da NATO e dos EUA voltava-se para o Iraque. Como disseram os críticos, na altura, esta combinação explosiva de abandono de prioridades, trabalho deixado a meio, adiamento de soluções e desguarnecimento territorial iria ter consequências.
As tropas da Aliança, hoje envolvidas numa guerra sem quartel (que não podem perder, mas que dificilmente conseguem ganhar), vivem essas consequências.
Dia D
No Ocidente do Sudão, há três anos, dois movimentos armados (o MJI e o ELS) começaram uma ‘guerra de libertação’. Diziam representar os interesses das etnias e tribos oprimidas da região, contra o governo de Cartum e as suas milícias. Entretanto, a guerrilha dividiu-se, ocorreram centenas de milhares de mortos e o Mundo despertou para mais uma atrocidade.
O ‘Dia do Darfur’ é hoje. Servirá para alguma coisa?
Nuno Rogeiro
Retirado do Correio da Manhã, 17 de Setembro de 2006.
Em discurso erudito (que poucos leram), na Aula Magna da sua antiga Universidade de Regensburg, Bento XVI tocou um tema querido: pode a religião ser contrária à razão?
Em várias passagens, cita controvérsias mortais dentro do pensamento ocidental, do Cristianismo, e da própria Igreja Católica. Explica, por exemplo, que a tentativa de retirar à última a herança helenística esteve na origem da consideração da fé como um mecanismo separado da realidade. Lembra, porém, que quando se diz, na (primeira) versão grega dos Evangelhos, “Ao Princípio era o Verbo” (Logos), isso significa “no começo era a razão e a palavra”.
O logos, a palavra da razão, que consubstancia a verdade, apela ao espírito. Já a guerra se joga para o corpo. Nesse sentido, a guerra é ‘irracional’, ao mesmo tempo que imoral. Citando Manuel II Paleólogo, em 1391, usa uma passagem traduzida por Theodore Khoury, explicando que, para o espírito helenístico do imperador bizantino, cercado em Constantinopla, parece “errado, injusto e desumano” que o Islão defenda a guerra, contra a razão.
Devastadora, a citação usa-se como mero exemplo, numa discussão teológica que, em vários pontos, é também demolidora para as teorias cristãs da ‘guerra justa’.
Joseph Ratzinger não é nem uma estrela de cinema, nem um presidente, nem um director de relações públicas. O seu tempo é próprio, e isso pode trazer problemas aos que esperam espectáculo. Mas acusá-lo de começar uma cruzada é ler ao contrário o que foi dito.
Erros e (o)missões
Ahmed Rashid, autor de uma boa história dos Taliban, explica que, durante três anos, as zonas tribais do Waziristão foram deixadas ao deus-dará, depois da fuga de bin Laden da sua fortaleza em Tora Bora, no fim de 2001. Foi precisamente aí, sem lei nem ordem, e sobretudo sem exército paquistanês, que a coligação entre a al-Qaeda e os ‘estudantes de teologia’ do mullah Mohamad Omar, se reconstruiu.
Fez novos adeptos, recriou os circuitos de recrutamento, fornecimento de armas e financiamento, reabriu as zonas de passagem para o Sul e Oriente do Afeganistão e, em suma, preparou a reconquista do poder. Ao mesmo tempo que isto se passava, a atenção estratégica da NATO e dos EUA voltava-se para o Iraque. Como disseram os críticos, na altura, esta combinação explosiva de abandono de prioridades, trabalho deixado a meio, adiamento de soluções e desguarnecimento territorial iria ter consequências.
As tropas da Aliança, hoje envolvidas numa guerra sem quartel (que não podem perder, mas que dificilmente conseguem ganhar), vivem essas consequências.
Dia D
No Ocidente do Sudão, há três anos, dois movimentos armados (o MJI e o ELS) começaram uma ‘guerra de libertação’. Diziam representar os interesses das etnias e tribos oprimidas da região, contra o governo de Cartum e as suas milícias. Entretanto, a guerrilha dividiu-se, ocorreram centenas de milhares de mortos e o Mundo despertou para mais uma atrocidade.
O ‘Dia do Darfur’ é hoje. Servirá para alguma coisa?
Nuno Rogeiro
Retirado do Correio da Manhã, 17 de Setembro de 2006.
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