Orgulho em ser português
Há uma quantidade de coisas curiosas na situação do ensino em Portugal, que vão desde as estatísticas sobre os extraordinários progressos na alfabetização do país nas últimas três dezenas de anos até à resistência troglodita dos sindicatos de professores a qualquer mudança na posição das carteiras nas salas de aulas. Tirando um ou outro acidente menor de percurso, como a incapacidade da maioria dos alunos de fazer uma conta de cabeça até à incapacidade da esmagadora maioria dos licenciados por qualquer universidade de saber com quantos “cês” de cedilha é que se escreve a palavra do seu almejado emprego de assessor; todos estão mais ou menos de acordo em que a democratização do ensino iniciada pelo Prof. Veiga Simão ainda nos tempos em que mandava gorilas para a universidade espancar os estudantes do reviralho e prosseguida entusiasticamente pela Constituição de Abril conseguiu ultrapassar o dogma salazarista de que aos portugueses bastava saber escrever, ler e contar.
Basta entrar em qualquer lojeca de um centro comercial e comprar um jornal com uma nota de 5 euros para apreciar esta verdade estatística: uma grande parte, se não a maioria, das empregadas (no feminino por ser um facto e não por depreciação sexista) calcula o troco com uma máquina de calcular. A simples operação de subtrair 85 cêntimos a 5 euros parece ultrapassar as “competências” e os “saberes”, como dizem os pedagogos do Ministério da Educação, adquiridos na EBS+ 1, ou qual seja a cabalística designação que se dá hoje à escola primária. Também já não se encontram com a abundância e facilidade do passado os dizeres “à passarinhos” ou “bitela assada e rabo de voi” à porta das tascas, que ainda povoam o imaginário urbano sobre a ignorância simples do nosso bom povo espelhada nessa antologia da maneira de ser português que é o “Portugal no seu melhor”. Mas, em contrapartida, abundam os “ás” com o acento agudo nos cartazes publicitários e nas portas das repartições públicas, e esta é a menor das infracções. Ler com atenção qualquer tradução publicada pela maioria das editoras portuguesas é mergulhar num inferno de horrores ortográficos, gramaticais, cultura geral e bom senso. Nem os tradutores nem os revisores passariam o simples exame de antigo quinto ano dos liceus. Exemplos não faltam, e todos têm os seus preferidos, mas assim de cabeça posso citar Dean Acheson, um secretário de Estado americano, traduzido por “o Deão Acheson” (na recente edição do fabuloso “Paris após a Libertação” de Antony Beevor, ou “a cross between a monastery and a concentration camp” traduzido alucinantemente por “uma cruz entre um mosteiro e um campo de concentração”, no “Berlim” igualmente de Beevor, uma vítima habitual. Não ler traduções está a tornar-se uma questão de higiene mental, mas é preciso dizer que a culpa recai mais sobre as editoras, que não só pagam mal e porcamente como não têm quaisquer pruridos em pôr à venda produtos que não têm outra designação senão falsificações. Vender um livro mal traduzido, cheio de erros de ortografia e aberrações de sentido não é menos grave que vender falsos Rolexes ou falsas Lacostes. Mas quem é que se importa, desde que os autores e as suas editoras recebam os direitos? Deviam importar-se os leitores.
Mas quais leitores? Um balanço recente indica que todos os jornais (e não sei se também os desportivos) estão a perder leitores a uma velocidade preocupante. Jornais ditos “de referência”, como o “Público” e o “Diário de Notícias”, perdem dinheiro e não vendem sequer 50 mil exemplares. O “Correio da Manhã”, um jornal popular que tem vindo a melhorar de qualidade de dia para dia, também perdeu leitores. E mesmo o fundo do tacho da suposta “qualidade”, como o “24 Horas”, também está nessa rampa inclinada. É esse o sucesso da “democratização do ensino”, quando o diário que mais vende em Portugal, o “Jornal de Notícias”, vende um terço do que vende o jornal da paróquia de Marienfeld, a vilória onde a “equipa de todos nós” nos dá grandes motivos de orgulho em ser português. À falta de outra coisa.
José Júdice
Retirado d’O Independente, 30 de Junho de 2006
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