Marcello, Gorbachev, Kerenski e etc.
Podem fazer-se paralelos entre Marcello, Gorbachev ou Kerensky, ou De Gaulle do fim?
Por um lado, sim, no sentido em que, como todos eles, se viu com um encargo impossível, que lhe criava genuínas dúvidas. A sua angústia histórica era enorme. Disse-mo em pessoa, escreveu-me em carta. Sabia que precisava de reformar o regime (ou continuá-lo), mas que a opção mais viável, mais imediata, era a revolução, ou o caos.
A sua aparente indecisão e contradições jurídico-políticas (e também o facto de estarem por divulgar muitos documentos e arquivos) criaram sensação de fraqueza, e até teorias de conspiração. A tese da sua conivência no 14 de Março e no 25 de Abril, propalada em Portugal e em Espanha (e que sempre o indignou), equivale a teoria semelhante, aplicada a Gorbachev, quando da sua ambígua posição de “sequestrado”, no golpe de Moscovo.
Poucos terão visto tão bem o problema como Vasco Pulido Valente (que não tem razões pessoais para ser Marcellista, antes pelo contrário), em As Desventuras da Razão. A democracia por ementa, tentada por Marcello, era impossível.
A “renovação na continuidade”, a aprendizagem pós-moderna da TV como arma política, nas Conversas em Família, a doutrina “democrática conservadora” de Em Defesa da Liberdade, o “favor” na abertura do Expresso, o ramo de Oliveira (ou mais do que isso) à “ala liberal”, a criação de governos tecnocráticos ou “pragmáticos” (pelo menos três do últimos ministros de Marcello aderiram ao PS, ou perto dele andaram) eram formas de quadrar um círculo. Os velhos adeptos do Estado Novo desconfiavam, os novos adeptos do Marcellismo quereriam mais, ou melhor, ou as duas coisas.
Ficou famosa, na altura, a brincadeira: “Com o professor Salazar, não percebíamos o que dizia, mas sabíamos o que queria; com o prof. Marcello, percebemos o que diz, mas não sabemos o que quer.”
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