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sexta-feira, julho 28, 2006

'Soltas' de São Paulo


A cidade mantém no Inverno a luz e o calor de Verão e só a feliz diminuição do trânsito indicia o período de férias.

São Paulo surpreendente, multifacetada urbe de toda a civilização e de toda a desigualdade, abrindo, em contraste, passo aos sonhos de fortuna e êxito que mesmo os mais pobres agarram como um balão de vento, expectantes e crédulos.

Converso sobre a vida e a política com taxistas e comerciantes, vendedores de água de coco, de óculos de contrabando ou "curitas". Descobri que, se o Brasil tem ainda muitos analfabetos, tem cada vez menos iletrados. Ao contrário de nós. Não há um único que interpelado sobre o que se passa não expenda uma teoria própria sobre o estado da nação.

A corrupção, sempre na ordem do dia, centra-se agora em torno das "sanguessugas", 112 parlamentares acusados de participação num esquema de sobrefacturação na compra de ambulâncias. As televisões passam as fotografias das sanguessugas, em formato "passe", caras patibulares e uma presença significativa de mulheres, igualmente envolvidas na operação, homenagem, decerto, ao modelo das quotas…

Todos são unânimes quanto à oportunidade de submeter o Congresso a uma "faxina geral", embora o brasileiro assuma com humor a fatalidade do político ladrão. Muitos fazem profissão de fé na afirmação de que se os governantes roubassem um pouco menos, o Brasil tornar-se-ia rapidamente um enorme e magnífico país. Curiosamente de Lula só leio uma afirmação meio besta, "nós não aceitaremos que me chamem de desonesto". Mas sendo certo que Lula vai ganhar, e se não à primeira volta apenas graças à candidatura de Heloísa que pode rachar os votos, dividindo o eleitorado "lulista" com má consciência, como explicar este fenómeno?

Decerto pela aposta das máquinas eleitorais no carácter emotivo das massas (compreensível num país com as características culturais do Brasil) e o facto de as opiniões manifestadas na rua e nos media não terem, depois, correspondência nas urnas.

A maior controvérsia surge aquando da sentença do "caso Richthofen", o assassinato de um casal às mãos da própria filha, o namorado e o irmão. O sucedido ganha mais relevo, injustamente é certo, por se tratar de pessoas de condição. Mas o que abala a opinião pública é o facto de a filha Suzane, condenada a 39 anos de prisão, poder sair em liberdade em menos de quatro. Este caso e outro que também envolve um menor levantam a dúvida sobre a adequação das leis a novas e tristes realidades sociais. Penso no reduzido peso que a opinião pública portuguesa teve no nosso processo da Casa Pia, versus o excessivo peso da opinião publicada, e não posso deixar de apreciar o modo desenvolto como todos opinam, ali na rua, naquela terra à qual ainda não foi dado um estatuto de desenvolvida de acordo com os indicadores oficiais.

Mas o Brasil vai andando, e esse facto parece irritar os melhores colunistas cuja indignação provocatória aprecio, como Ubaldo Ribeiro, que procede à impiedosa autópsia de umas elites definitivamente demissionárias, que já não querem ver, nem ouvir, nem falar sobre nada do que dói e incomoda.

Nada, afinal, a que não estejamos habituados nesta Europa decadente que tem a menos o futuro, a esperança e a alegria que os brasileiros, pé rapado ou não, teimosamente reivindicam e ostentam.

Passeio pela cidade constatando o princípio da infinita resistência humana: ao clima, à violência, ao mau Governo, às desigualdades de oportunidades, às privações de bens essenciais, ao peso de uma urbe gigantesca, labiríntica, por vezes desumana, as longas distâncias, o trânsito, a poluição.

E em surpreendente contraste uma grande metrópole desenvolvida, com excelente oferta cultural, comércio de luxo, arquitectura de rara beleza e qualidade, o talento de aproveitar cada espaço para fazer algo bonito, paredes meias com os limites das favelas, territórios de vegetação tropical como selvas demarcadas, ao lado do betão mais puro e duro.

Vou levada por essa desordem ordenada a caminho do MASP não sem antes contemplar, cobiçosa, a feirinha de velharias onde, displicentes, os vendedores oferecem a preços ridículos as pratas portuguesas do século XVIII que são simultaneamente os restos das fazendas, dos sobradões, do Império e de nós próprios.

Maria José Nogueira Pinto

Retirado do Diário de Notícias, 27 de Julho de 2006.