O espaço das nações
A arrumação dos povos no espaço é o acto fundacional da sociedade internacional, como a arrumação do espaço interno, em termos de lei, ordem, direitos e deveres, funda a “polis”. Um bom manual de História explica o problema: a divisão da terra, o traçado do “limes”, da fronteira, depois sacralizada com a sucessão das gerações como pátria, “vaterland”, terra dos pais. A partir do século IV, a questão essencial do Império Romano, a Oriente e a Ocidente, foi acomodar as “nações” bárbaras - godos, vândalos, suevos - no espaço imperial; ora comprando-os, ora repelindo-os, ora integrando-os - “romanizando-os”.
Essa luta pelo espaço nunca foi, em si e por si, jurídica. Só depois de haver comunidade política estabelecida, “polis”, há Direito. Pode haver um “direito natural” entre as pessoas - com base na sua comum natureza de filhos de Deus, ou seres racionais; mas não há tal direito entre os povos e apesar das utopias megalómanas ou só simpáticas, desde os primeiros milenaristas a Kant, o Direito Internacional ainda é, em substância e sobretudo em eficácia, “um direito externo dos Estados”. Estas considerações só me parecem necessárias, quando, de regresso de uma semana no Adriático, numa região de histórias de “encontros”, pacíficos e armados, de culturas e civilizações, vejo o debate doméstico sobre a guerra do Líbano: “ideológico” e “partidário” até à medula, quando não politicamente correcto ou arrogantemente pedagógico.
Ora a equação médio-oriental tem a ver com o estabelecimento, no espaço, um espaço historicamente entendido como seu, pelos Judeus da Diáspora, em 1948, do Estado de Israel. E é de pensar, nesta matéria, aquela referência – que Jünger faz nos seus Diários - de que dos povos subjugados pelo Grande Rei, só chegou até nós este “povo escolhido” onde Cristo nasceu e morreu, povo a que a crença na aliança divina deu uma vida eternamente atribulada. Que se manteve pela prática das regras das sociedades antigas - repetição de mitos e ritos, endogamia, superioridade do grupo face aos membros e, sobretudo, unidade perante os “gentios”. Mas que gerou os construtores de uma “modernidade” subversiva de tudo isto, com Marx, Freud, Kafka, Trotsky e os Rotschild, Einstein e os grandes produtores de Hollywood.
Mas Israel independente, para sobreviver, teve que adoptar todas as regras de sobrevivência de povos nos meios hostis: militarização da juventude, controlos dos “não-nacionais", “intelligence d'abord”, guerra preventiva. Isto é, práticas de razão de Estado de todas as minorias ameaçadas ou provadas no extermínio, dos espartanos aos boers ou aos tutsis.
Contradições? Leiam-se os “liberais” da diáspora americana, como Philip Roth e (veja-se) Woody Allen e os conservadores, de Podhoretz aos Kristoll e percebe-se melhor o problema. Do outro lado estão os Árabes, com uma História ao revés. Grandes à partida, aterrando a África e a Europa até Poitiers; já otomanos, derrotados em Lepanto pela Aliança Católica e o génio estratégico do bastardo de Carlos V, D. João da Áustria; e parados de vez, em Viena por Sobiesky.
E depois só decadência: frente aos russos, aos austríacos, aos balcânicos, até à queda sob o jogo colonial de britânicos, franceses e espanhóis. Os senhores das grandes cidades e culturas da Bagdad de Harum-al Rachid à Constantinopla da Sublime Porta, aos berberes de Argel e do Riff, foram reduzidos a situações coloniais.
Destas humilhações nasceu, entreguerras, o movimento dos «irmãos Muçulmanos», o pai do nacionalismo islâmico e dos “nacionalismos” estatais islâmicos, os inspiradores ideológicos dos “jovens oficiais” modernizantes, dos voluntários da Internacional Islâmica da Al-Qaeda, do Hamas ao Hezbollah .
Assim esta é também a colisão de dois “nacionalismos” em busca de espaço, do mesmo espaço. Um espaço simbolizado por Jerusalém - cidade santa de toda a gente - que podia ser salomonicamente internacionalizada, se a comunidade internacional servisse para alguma coisa!
Israel bate-se, sempre, contra o muro, e por isso tem que ser rápido e impiedoso na resposta; os árabes carregam a memória da grandeza e a carga da humilhação e de uma “imagem” negativa no mundo euro-americano. (Desde Lawrence da Arábia, de um inglês, David Lean, que não se vê um árabe decente ou normal no cinema). Com um fundo histórico, geopolítico e cultural destes, andar à procura de uma justiça e razão absolutas, dos “bons” e dos “maus” da fita, é um exercício inútil, senão pernicioso. Próprio para “politicamente correctos” de todos os quadrantes, sejam esquerdistas da ultra-esquerda, direitistas da esquerda ou empalhados ao centro. Talvez a tão injuriada “realpolitik”, que não procura a razão, mas avalia as razões e as forças dessas razões, que mede os poderes para dissuadir, que procura construir a partir do que é, a “realpolitik” tão denegrida pelo coro dos sábios e vestais do costume seja, melhor ou pior, o caminho a seguir.
Israel terá que reconhecer um Estado palestiniano plenamente estatal e independente se quiser ter paz; e o mundo árabe terá que perceber que Israel tem direito a viver, porque está disposto a bater-se duro por esse direito. E terão que dividir território, traçar fronteiras, e portar-se como Estados normais e vizinhos.
Querer resolver as coisas a partir de textos utópicos, redigidos por cínicos na euforia das novas ordens, ou em sentenças moralizantes e boazinhas que comovem as almas laicas suburbanas e electrizam os espártacos de serviço, é tratar a guerra do Líbano em termos de “silly season”.
Jaime Nogueira Pinto
Retirado do Expresso, 05 de Agosto de 2006 (via Sexo dos Anjos)
Essa luta pelo espaço nunca foi, em si e por si, jurídica. Só depois de haver comunidade política estabelecida, “polis”, há Direito. Pode haver um “direito natural” entre as pessoas - com base na sua comum natureza de filhos de Deus, ou seres racionais; mas não há tal direito entre os povos e apesar das utopias megalómanas ou só simpáticas, desde os primeiros milenaristas a Kant, o Direito Internacional ainda é, em substância e sobretudo em eficácia, “um direito externo dos Estados”. Estas considerações só me parecem necessárias, quando, de regresso de uma semana no Adriático, numa região de histórias de “encontros”, pacíficos e armados, de culturas e civilizações, vejo o debate doméstico sobre a guerra do Líbano: “ideológico” e “partidário” até à medula, quando não politicamente correcto ou arrogantemente pedagógico.
Ora a equação médio-oriental tem a ver com o estabelecimento, no espaço, um espaço historicamente entendido como seu, pelos Judeus da Diáspora, em 1948, do Estado de Israel. E é de pensar, nesta matéria, aquela referência – que Jünger faz nos seus Diários - de que dos povos subjugados pelo Grande Rei, só chegou até nós este “povo escolhido” onde Cristo nasceu e morreu, povo a que a crença na aliança divina deu uma vida eternamente atribulada. Que se manteve pela prática das regras das sociedades antigas - repetição de mitos e ritos, endogamia, superioridade do grupo face aos membros e, sobretudo, unidade perante os “gentios”. Mas que gerou os construtores de uma “modernidade” subversiva de tudo isto, com Marx, Freud, Kafka, Trotsky e os Rotschild, Einstein e os grandes produtores de Hollywood.
Mas Israel independente, para sobreviver, teve que adoptar todas as regras de sobrevivência de povos nos meios hostis: militarização da juventude, controlos dos “não-nacionais", “intelligence d'abord”, guerra preventiva. Isto é, práticas de razão de Estado de todas as minorias ameaçadas ou provadas no extermínio, dos espartanos aos boers ou aos tutsis.
Contradições? Leiam-se os “liberais” da diáspora americana, como Philip Roth e (veja-se) Woody Allen e os conservadores, de Podhoretz aos Kristoll e percebe-se melhor o problema. Do outro lado estão os Árabes, com uma História ao revés. Grandes à partida, aterrando a África e a Europa até Poitiers; já otomanos, derrotados em Lepanto pela Aliança Católica e o génio estratégico do bastardo de Carlos V, D. João da Áustria; e parados de vez, em Viena por Sobiesky.
E depois só decadência: frente aos russos, aos austríacos, aos balcânicos, até à queda sob o jogo colonial de britânicos, franceses e espanhóis. Os senhores das grandes cidades e culturas da Bagdad de Harum-al Rachid à Constantinopla da Sublime Porta, aos berberes de Argel e do Riff, foram reduzidos a situações coloniais.
Destas humilhações nasceu, entreguerras, o movimento dos «irmãos Muçulmanos», o pai do nacionalismo islâmico e dos “nacionalismos” estatais islâmicos, os inspiradores ideológicos dos “jovens oficiais” modernizantes, dos voluntários da Internacional Islâmica da Al-Qaeda, do Hamas ao Hezbollah .
Assim esta é também a colisão de dois “nacionalismos” em busca de espaço, do mesmo espaço. Um espaço simbolizado por Jerusalém - cidade santa de toda a gente - que podia ser salomonicamente internacionalizada, se a comunidade internacional servisse para alguma coisa!
Israel bate-se, sempre, contra o muro, e por isso tem que ser rápido e impiedoso na resposta; os árabes carregam a memória da grandeza e a carga da humilhação e de uma “imagem” negativa no mundo euro-americano. (Desde Lawrence da Arábia, de um inglês, David Lean, que não se vê um árabe decente ou normal no cinema). Com um fundo histórico, geopolítico e cultural destes, andar à procura de uma justiça e razão absolutas, dos “bons” e dos “maus” da fita, é um exercício inútil, senão pernicioso. Próprio para “politicamente correctos” de todos os quadrantes, sejam esquerdistas da ultra-esquerda, direitistas da esquerda ou empalhados ao centro. Talvez a tão injuriada “realpolitik”, que não procura a razão, mas avalia as razões e as forças dessas razões, que mede os poderes para dissuadir, que procura construir a partir do que é, a “realpolitik” tão denegrida pelo coro dos sábios e vestais do costume seja, melhor ou pior, o caminho a seguir.
Israel terá que reconhecer um Estado palestiniano plenamente estatal e independente se quiser ter paz; e o mundo árabe terá que perceber que Israel tem direito a viver, porque está disposto a bater-se duro por esse direito. E terão que dividir território, traçar fronteiras, e portar-se como Estados normais e vizinhos.
Querer resolver as coisas a partir de textos utópicos, redigidos por cínicos na euforia das novas ordens, ou em sentenças moralizantes e boazinhas que comovem as almas laicas suburbanas e electrizam os espártacos de serviço, é tratar a guerra do Líbano em termos de “silly season”.
Jaime Nogueira Pinto
Retirado do Expresso, 05 de Agosto de 2006 (via Sexo dos Anjos)
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