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domingo, agosto 06, 2006

O espaço das nações


A arrumação dos povos no espaço é o acto fundacional da sociedade internacional, como a arrumação do espaço interno, em termos de lei, ordem, direitos e deveres, funda a “polis”. Um bom manual de História explica o problema: a divisão da terra, o traçado do “limes”, da fronteira, depois sacralizada com a sucessão das gerações como pátria, “vaterland”, terra dos pais. A partir do século IV, a questão essencial do Império Romano, a Oriente e a Ocidente, foi acomodar as “nações” bárbaras - godos, vândalos, suevos - no espaço imperial; ora comprando-os, ora repelindo-os, ora integrando-os - “romanizando-os”.
Essa luta pelo espaço nunca foi, em si e por si, jurídica. Só depois de haver comunidade política estabelecida, “polis”, há Direito. Pode haver um “direito natural” entre as pessoas - com base na sua comum natureza de filhos de Deus, ou seres racionais; mas não há tal direito entre os povos e apesar das utopias megalómanas ou só simpáticas, desde os primeiros milenaristas a Kant, o Direito Internacional ainda é, em substância e sobretudo em eficácia, “um direito externo dos Estados”. Estas considerações só me parecem necessárias, quando, de regresso de uma semana no Adriático, numa região de histórias de “encontros”, pacíficos e armados, de culturas e civilizações, vejo o debate doméstico sobre a guerra do Líbano: “ideológico” e “partidário” até à medula, quando não politicamente correcto ou arrogantemente pedagógico.
Ora a equação médio-oriental tem a ver com o estabelecimento, no espaço, um espaço historicamente entendido como seu, pelos Judeus da Diáspora, em 1948, do Estado de Israel. E é de pensar, nesta matéria, aquela referência – que Jünger faz nos seus Diários - de que dos povos subjugados pelo Grande Rei, só chegou até nós este “povo escolhido” onde Cristo nasceu e morreu, povo a que a crença na aliança divina deu uma vida eternamente atribulada. Que se manteve pela prática das regras das sociedades antigas - repetição de mitos e ritos, endogamia, superioridade do grupo face aos membros e, sobretudo, unidade perante os “gentios”. Mas que gerou os construtores de uma “modernidade” subversiva de tudo isto, com Marx, Freud, Kafka, Trotsky e os Rotschild, Einstein e os grandes produtores de Hollywood.
Mas Israel independente, para sobreviver, teve que adoptar todas as regras de sobrevivência de povos nos meios hostis: militarização da juventude, controlos dos “não-nacionais", “intelligence d'abord”, guerra preventiva. Isto é, práticas de razão de Estado de todas as minorias ameaçadas ou provadas no extermínio, dos espartanos aos boers ou aos tutsis.
Contradições? Leiam-se os “liberais” da diáspora americana, como Philip Roth e (veja-se) Woody Allen e os conservadores, de Podhoretz aos Kristoll e percebe-se melhor o problema. Do outro lado estão os Árabes, com uma História ao revés. Grandes à partida, aterrando a África e a Europa até Poitiers; já otomanos, derrotados em Lepanto pela Aliança Católica e o génio estratégico do bastardo de Carlos V, D. João da Áustria; e parados de vez, em Viena por Sobiesky.
E depois só decadência: frente aos russos, aos austríacos, aos balcânicos, até à queda sob o jogo colonial de britânicos, franceses e espanhóis. Os senhores das grandes cidades e culturas da Bagdad de Harum-al Rachid à Constantinopla da Sublime Porta, aos berberes de Argel e do Riff, foram reduzidos a situações coloniais.
Destas humilhações nasceu, entreguerras, o movimento dos «irmãos Muçulmanos», o pai do nacionalismo islâmico e dos “nacionalismos” estatais islâmicos, os inspiradores ideológicos dos “jovens oficiais” modernizantes, dos voluntários da Internacional Islâmica da Al-Qaeda, do Hamas ao Hezbollah .
Assim esta é também a colisão de dois “nacionalismos” em busca de espaço, do mesmo espaço. Um espaço simbolizado por Jerusalém - cidade santa de toda a gente - que podia ser salomonicamente internacionalizada, se a comunidade internacional servisse para alguma coisa!
Israel bate-se, sempre, contra o muro, e por isso tem que ser rápido e impiedoso na resposta; os árabes carregam a memória da grandeza e a carga da humilhação e de uma “imagem” negativa no mundo euro-americano. (Desde Lawrence da Arábia, de um inglês, David Lean, que não se vê um árabe decente ou normal no cinema). Com um fundo histórico, geopolítico e cultural destes, andar à procura de uma justiça e razão absolutas, dos “bons” e dos “maus” da fita, é um exercício inútil, senão pernicioso. Próprio para “politicamente correctos” de todos os quadrantes, sejam esquerdistas da ultra-esquerda, direitistas da esquerda ou empalhados ao centro. Talvez a tão injuriada “realpolitik”, que não procura a razão, mas avalia as razões e as forças dessas razões, que mede os poderes para dissuadir, que procura construir a partir do que é, a “realpolitik” tão denegrida pelo coro dos sábios e vestais do costume seja, melhor ou pior, o caminho a seguir.
Israel terá que reconhecer um Estado palestiniano plenamente estatal e independente se quiser ter paz; e o mundo árabe terá que perceber que Israel tem direito a viver, porque está disposto a bater-se duro por esse direito. E terão que dividir território, traçar fronteiras, e portar-se como Estados normais e vizinhos.
Querer resolver as coisas a partir de textos utópicos, redigidos por cínicos na euforia das novas ordens, ou em sentenças moralizantes e boazinhas que comovem as almas laicas suburbanas e electrizam os espártacos de serviço, é tratar a guerra do Líbano em termos de “silly season”.

Jaime Nogueira Pinto

Retirado do Expresso, 05 de Agosto de 2006 (via Sexo dos Anjos)