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sábado, julho 08, 2006

“Está a equivocar-se o futebol com uma jornada patriótica”

“O País está à beira de se exaltar de novo na era dos descobrimentos” e os portugueses “andam endoidados por causa das doses industriais de futebol”. As palavras críticas são de Silva Resende, que apesar de se confessar amante do “desporto rei” distingue “os heróis populares dos heróis nacionais”. Para o jornalista “não se pode confundir o Eusébio com o Vasco da Gama”

Que análise faz à cobertura televisiva nacional numa altura em que a “febre do Mundial” domina o País?

Com o objectivo de conquistar audiências os canais colocaram-se à compita para ver quem é que transmite mais esquecendo a qualidade. Fazem-se entrevistas com personalidades de todos os quadrantes sociais e desportivos mas com perguntas banais e respostas previsíveis.

Há um excesso de futebol no pequeno ecrã?

Estamos perante um desgaste da paciência dos telespectadores, mesmo aqueles que gostam de futebol, como eu. Não há nada de novo e é tudo muito contingente. O futebol também não é muito rico mas se o tornam mais pobre torna-se fastidioso. Está-se a gastar imagens, caracteres e pessoas com banalidades frívolas.

Crítica o facto de os responsáveis pela programação e informação optarem por transmitir aquilo de que o “Povo gosta”?

Isso é um ciclo vicioso. E é pelo facto de oferecerem futebol em doses industriais que o povo anda endoidado. Parece-me que está a funcionar uma barragem de propaganda, e que certas centrais de decisão visam justamente desviar a opinião pública dos grandes problemas do País.

Na sua opinião, o acontecimento que só se realiza em cada quatro anos não justifica portanto o tratamento que tem sido dado?

Podia dar-se ao Mundial de Futebol um relevo compatível, mas o facto é que não passa de acontecimento desportivo. O futebol é apenas um jogo e o que se está a fazer em Portugal é equivocá-lo com uma jornada patriótica e elevá-lo acima da sua tabela de valores. É um erro gravíssimo para a Nação estar a confundir-se a identidade nacional com a identidade do futebol. Isto é inadmissível!

O futebol enquanto jogo só pode produzir heróis populares e não heróis nacionais. Não se pode confundir o Eusébio com o Vasco da Gama. Parece que de repente despertou o instinto patriótico, o que revela a baixeza de comportamentos anteriores.

E porquê?

O povo português andou arredio dos seus valores e agora deram-lhe o futebol como compensação. Este exagero que se compara a uma gesta epopeica é também o fruto da nostalgia que existia no nosso povo, provocada por uma revolução que esvaziou o País e seus valores. A profusão das grandezas nacionais não é de agora, e não me digam que foi o senhor Scolari que provocou esta situação.

As suas críticas são dirigidas a todos os canais nacionais?

Tenho visto alguns canais com maior frequência, nomeadamente a SIC. Mas em questões de opinião e de reportagem, creio que se equivalem no exagero, à excepção da 2: que mantém o cariz mais cultural.

Os canais internacionais também “afinam todos pelo mesmo diapasão”?

Não, nos canais estrangeiros não vejo este exagero. Comunicam os assuntos mais essenciais mas não se vê este “fogo sagrado”, parece que o País está à beira de se exaltar de novo na era dos descobrimentos. E digo isto para defesa do próprio futebol, que teve uma acção pedagógica a partir da era industrial, preenchendo os tempos vazios pela conquista dos horários de trabalho, com o objectivo de cultivar os valores morais – a ética e a lealdade - , aquilo que depois os ingleses chamaram de “fair play”.

E esses valores desapareceram?

Estão a fazer do futebol um instrumento de interesse monstruoso que não tem nada de desportivo e chega mesmo a ser imoral.

Eu próprio estive à frente da Federação durante dez anos e nunca ganhei um tostão, pois não era esse o nosso estatuto. Hoje toda a gente ganha dinheiro.

A televisão pública deveria ter uma atitude diferente dos restantes canais?

Deveria ter uma atitude de qualidade, que contrapusesse à quantidade dos outros. Era necessário que tivessem a coragem de repor as coisas no seu lugar e entrevistar pessoas com critérios.

A RTP1 deveria ter comprado a transmissão de alguns jogos?

Dentro do esquema da informação que interessa a uma camada vasta do povo, penso que a RTP deveria ter adquirido os direitos de alguns jogos mais importantes e expressivos.

Qual o papel que a televisão deve ter nos dias de hoje?

A televisão está a tratar de um mundo invertido. Quando vejo as novelas reparo que se está a dar uma exemplificação desastrosa de um mundo estrábico, em que os pais são mandados e quase que agredidos pelos filhos, os valores da família estão a “cair por terra” em proveito de uma libertinagem que parece ser moda, a exibição das chagas sociais é aplaudida... e este mundo ao contrário está a ser construído em grande parte pelas televisões que vão atrás das audiências, que se deixam enfeitiçar pelos absurdos. Estamos a assistir a uma diarreia de patologia social todos os dias no pequeno ecrã, em que os crimes e os acidentes ocupam 90 porcento das notícias. A televisão não deve deixar de ser informativa mas ser também formativa.

Retirado d'O Diabo, 04 de Julho de 2006